São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Crise grega chega aos EUA

NIALL FERGUSON
DO "FINANCIAL TIMES"

Começou em Atenas. Está se espalhando para Lisboa e Madri. Mas seria um grave erro presumir que a crise da dívida soberana em curso continuará confinada às economias mais fracas da zona do euro. Pois estamos diante de mais que um problema mediterrâneo definido por um acrônimo jocoso. Suas ramificações são muito mais profundas do que a maioria dos investidores percebe no momento.
Existe, é claro, uma característica distintiva na crise da zona do euro. Devido à maneira pela qual a união monetária europeia foi concebida, na verdade não há um mecanismo para um resgate ao governo grego pela União Europeia, pelos demais países-membros ou pelo BCE (Banco Central Europeu), nos termos dos artigos 123 e 125 do Tratado de Lisboa. É fato que o artigo 122 poderia ser invocado pelo Conselho Europeu para ajudar um país-membro "seriamente ameaçado por dificuldades severas, causadas por desastres naturais ou circunstâncias excepcionais e além de seu controle", mas, por enquanto, ninguém deseja fingir que o imenso deficit grego foi um ato de Deus. E tampouco existe uma forma para que a Grécia desvalorize sua moeda, como teria feito nos dias da dracma, antes da união monetária. Não existe nem mesmo um mecanismo para que a Grécia abandone a zona do euro.
Isso deixa só três possibilidades: uma das mais dolorosas compressões fiscais da história europeia moderna: reduzir o deficit de 13% para 3% do PIB em três anos; moratória aberta, total ou parcial, da dívida pública grega; ou (a saída mais provável, como sinalizaram autoridades alemãs na semana passada) alguma espécie de resgate liderado por Berlim. Já que nenhuma dessas opções atrai muito, e porque qualquer decisão quanto à Grécia terá implicações em Portugal, Espanha e possivelmente em outros países, será necessária uma complicada barganha antes que uma decisão seja tomada.
No entanto, as idiossincrasias da zona do euro não deveriam nos distrair com relação à natureza geral da crise fiscal que agora aflige a maioria das economias do Ocidente. Poderíamos defini-la como a geometria fractal da dívida: o problema é essencialmente o mesmo, da Islândia à Irlanda, ao Reino Unido e ao EUA. O que varia apenas, e muito, é o tamanho da questão.
O que nós, no mundo ocidental, estamos a ponto de aprender é que não existe almoço grátis keynesiano. Na verdade, não foram tanto os deficit que nos "salvaram", e, sim, a política monetária (taxas de juros zero e relaxamento quantitativo). Primeiro, o impacto dos gastos do governo (o tão alardeado "multiplicador") foi muito inferior ao que os proponentes do estímulo esperavam. Segundo, há um considerável "vazamento" das economias abertas, em um mundo globalizado. Por fim, e crucialmente, explosões de dívida pública sempre resultam em contas que vencem mais cedo do que esperávamos.

Porto seguro
Para a maior economia do mundo, os EUA, o dia do pagamento ainda parece reconfortantemente distante. Quanto piores as coisas ficam na zona do euro, mais o dólar se recupera, já que os investidores nervosos estacionam seu dinheiro no "porto seguro" dos títulos da dívida pública norte-americana. O efeito pode persistir por alguns meses, da mesma forma que o dólar e os títulos do Tesouro dos EUA registraram alta nas profundezas do pânico bancário do final de 2008.
Mas mesmo um olhar casual para a posição fiscal do governo federal norte-americano (para não mencionar a dos Estados) torna absurda a expressão "porto seguro". Os títulos de dívida norte-americanos são tão porto seguro hoje quanto Pearl Harbor o era em 1941.
Mesmo de acordo com as novas projeções orçamentárias da Casa Branca, a dívida federal bruta detida pelo público superará os 100% do PIB em apenas dois anos. Neste ano, como em 2009, o deficit federal será de cerca de 10% do PIB. As projeções de longo prazo do Escritório Orçamentário do Congresso sugerem que os EUA nunca mais terão um Orçamento equilibrado. É isso mesmo: nunca mais.

Ajustes
O FMI (Fundo Monetário Internacional) recentemente publicou estimativas dos ajustes fiscais de que as economias desenvolvidas precisariam para restaurar a estabilidade fiscal na década vindoura. A pior situação é a de Japão e Reino Unido (um aperto fiscal da ordem de 13% do PIB), seguidos por Irlanda, Espanha e Grécia (com 9%). E em sexto lugar? Os EUA, que precisariam de um aperto de política fiscal da ordem de 8,8% do PIB a fim de satisfazer o FMI.
As explosões de dívida pública prejudicam as economias da seguinte maneira, como diversos estudos empíricos demonstram: ao agravar os temores de moratória e/ou desvalorização cambial, seguidas por inflação, elas geram alta nas taxas reais de juros. Juros reais mais altos, por sua vez, limitam o crescimento, especialmente quando o setor privado também tem pesado endividamento, o que é o caso da maior parte das economias ocidentais, e não só da dos EUA.
Ainda que o índice de poupança domiciliar dos EUA esteja em alta desde o início da Grande Recessão, esse aumento não basta para absorver um montante líquido de US$ 1 trilhão em títulos de Tesouro emitido a cada ano. Apenas duas coisas evitaram, até agora, que os rendimentos dos títulos norte-americanos subissem: as aquisições desses papéis (e de títulos lastreados por hipotecas, que muitos vendedores na prática trocaram por títulos públicos) conduzidas pelo banco central norte-americano (Federal Reserve, o Fed) e o acúmulo de reservas cambiais pelas autoridades monetárias chinesas.

Relaxamento
Mas agora o Fed está descontinuando essas aquisições e deve pôr fim ao relaxamento quantitativo. Enquanto isso, os chineses reduziram as suas aquisições de títulos do Tesouro, de 47% do montante novo emitido em 2006 para 20% em 2008 e uma fração estimada em 5% no ano passado. Pouco admira que o Morgan Stanley presuma que o rendimento dos títulos de dez anos subirá de 3,5% a 5,5% neste ano. Sobre uma dívida pública federal bruta que rapidamente se aproxima dos US$ 15 trilhões, isso implica US$ 300 bilhões adicionais em custo de juros, e o momento em que esse montante precisará começar a ser pago não vai demorar, se considerarmos que o vencimento médio dos títulos em circulação é inferior a 50 meses.
O novo Orçamento do governo Obama presume, alegremente, que o PIB crescerá em média 3,6% anuais pelos próximos cinco anos, com inflação anual média de 1,4%. Mas, diante de juros reais em alta, o crescimento pode ser inferior. Nessas circunstâncias, os pagamentos de juros cresceriam como proporção da arrecadação federal de 10% a 20% ou 25%.
Há duas semanas, a agência de classificação de crédito Moody's afirmou que a classificação AAA dos títulos do Tesouro americano não era automática. O alerta traz à memória a pergunta mordaz de Larry Summers (feita antes que ele retornasse ao governo): "Por quanto tempo o maior devedor do mundo continuará a ser a maior potência do mundo?".
Pensando bem, é apropriado que a crise fiscal do Ocidente tenha começado na Grécia, o berço da civilização ocidental. Em breve, ela atravessará o canal e chegará ao Reino Unido. Mas a questão crucial é determinar quando ela chegará ao último baluarte do poderio ocidental, do lado oposto do Atlântico.
NIALL FERGUSON é professor da Universidade Harvard e autor de "The Ascent of Money: A Financial History of the World".

Tradução de PAULO MIGLIACCI



Texto Anterior: Serviços preveem melhor ano da história
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.