São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O avanço da China no comércio internacional

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Na semana passada, o FMI publicou um estudo -assinado por dois economistas do Departamento Ásia-Pacífico- sobre a evolução do comércio exterior da China. O trabalho de Thomas Runbaugh e Nicolas Blancher começa por registrar um fenômeno que se supõe conhecido: tanto as exportações como as importações chinesas cresceram, nos últimos 20 anos, acima das taxas de expansão do comércio mundial. O ritmo de crescimento das exportações e das importações ganhou força no início dos anos 90 e se acelerou ainda mais a partir de 1994, com a desvalorização do yuan, a moeda chinesa. Esse desempenho, é óbvio, determinou um aumento da participação chinesa no comercio global de 1%, em 1980, para 5,8% em 2003 (período de janeiro a junho).
Em seu movimento de expansão, o comércio exterior chinês revela algumas peculiaridades.
1) As exportações ganharam espaço rapidamente, sobretudo na década de 90, nos mercados da tríade desenvolvida (União Européia, Estados Unidos e Japão), enquanto o crescimento das importações favoreceu a produção dos vizinhos asiáticos. Assim, entre 1980 e 2003 (período de janeiro a junho), as exportações chinesas para o Japão, calculadas sobre as importações totais deste país, passaram de 3,1% para 18,8%. Nos Estados Unidos, as vendas made in China evoluíram de 0,5% para 11,3% no período considerado. Já, na Europa, o avanço foi mais modesto: de 0,7% para 6,9%.
2) As importações da China no início dos anos 80 estavam concentradas na tríade desenvolvida: o Japão respondia por 26% do total; os Estados Unidos, por 19,6%; e a União Européia vinha logo atrás com 15,8%. Os demais países asiáticos tinham participações desprezíveis: até 1990, a participação de Taiwan era nula e a Coréia do Sul contribuía com 0,4% das importações. Em 2003, a Ásia, inclusive o Japão, abocanhou 54,1% do total das importações chinesas, observando-se uma queda na fração japonesa (17,75%) e aumentos significativos no market share da Coréia (9,5%), de Taiwan (11,6%) e do grupo formado pela Malásia, pela Tailândia, pela Indonésia e por Cingapura (10,5%). No período considerado, caíram significativamente as participações dos Estados Unidos (8,5% em 2003) e da União Européia (12%) no total das importações chinesas.
Essas transformações ocorridas ao longo dos últimos 20 anos foram acompanhadas de mudanças importantes nas pautas de exportação e de importação da China, bem como na distribuição de déficits e superávits no comércio bilateral. Os dados do estudo do FMI mostram uma rápida graduação tecnológica das exportações chinesas, que passam da predominância dos chamados bens de consumo leves, como têxteis, vestuário, calçados, para equipamentos elétricos, partes e peças das indústrias aeronáutica e automobilística, bens de informática e eletroeletrônicos de consumo. As importações, por sua vez, incluem crescentemente peças e componentes industriais de alta densidade tecnológica para o abastecimento das indústrias exportadoras.
Desde 1994, a balança comercial chinesa (excluído Hong Kong) é superavitária em relação aos Estados Unidos e à União Européia. O saldo positivo com americanos e europeus era de US$ 16 bilhões e de US$ 5 bilhões, respectivamente. Em 2003, o superávit em relação aos Estados Unidos mais que quadruplicou, chegando a US$ 55 bilhões; em relação à União Européia, foi de US$ 18 bilhões, ou seja, mais que triplicou. Em compensação, a China é deficitária em relação aos vizinhos. Japão (US$ 14 bilhões em 2003), Coréia (US$ 21 bilhões), Taiwan (US$ 37 bilhões), os tigres de segunda geração (US$ 15 bilhões) e o resto da Ásia (US$ 22 bilhões) vêm acumulando superávits crescentes em relação à China.
O superávit total da balança comercial chinesa vem caindo: em 2003, foram registrados US$ 25 bilhões, contra US$ 40 bilhões em 1997. Essa queda foi determinada também pelo formidável aumento da demanda chinesa de matérias-primas e de alimentos que, entre outros cometimentos, provocou aumento generalizado de preços e ajudou a melhorar o desempenho da balança comercial brasileira.
O ingresso de investimento direto estrangeiro nos setores afetados pelo comércio continua reforçando a expansão das exportações para a tríade desenvolvida e provocou a rápida elevação do superávit comercial. Tais políticas constituíram, sobretudo, meios para a acumulação de reservas em moeda forte, o que permitiu a estabilização da taxa de câmbio em torno de 8,23 yuans por dólar. Essa estratégia vem permitindo uma maior liberdade na execução das políticas fiscais e monetárias compatíveis com o crescimento da demanda doméstica e com a modernização da infra-estrutura do país.
A China funciona, portanto, como uma colossal correia de transmissão de demanda mediante os sinais trocados das exportações líquidas dos países desenvolvidos, deficitários, para os países em desenvolvimento, superavitários. É um jogo que, nas circunstâncias atuais, pressupõe a reprodução instável dos "desequilíbrios" globais, particularmente a manutenção do papel dos Estados Unidos como "consumidor e devedor" em última instância.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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