São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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RUBENS RICUPERO

Amanhã, 25 anos


Alegra pensar que a cara do Brasil novo que se apresentou tenha sido o rosto inteligente e arguto, o sorriso de Tancredo


NÃO VOU falar da dor, da perplexidade, da sensação de orfandade daqueles dias. Mergulhado na releitura do "Diário de Bordo" que escrevi durante a viagem do dr. Tancredo antes da frustrada posse, prefiro, como Álvaro Moreyra, evocar as lembranças que ele nos deixou sob o título de "As amargas, não".
Quem percorrer o "Diário" há de ver como, até falando da morte, Tancredo nunca se separava da graça e da leveza de espírito. Quando se tentava enxertar algum compromisso novo nos programas carregados que ele devia cumprir na correria por tantos países, tentávamos, os acompanhantes sem fôlego, convencê-lo a recusar. Diante do argumento de que era preciso descansar, ele sorria e dizia: "Para descansar, teremos toda a eternidade".
Em Buenos Aires, última etapa do cansativo périplo pelo mundo, um dos visitantes que recebeu no hotel comentou, referindo-se à longa viagem: "Larga gira, presidente". Pensando que era alusão à sua comprida vida política, Tancredo comentou: "É, terei o mais longo necrológio do Brasil".
Na hora não percebi, só mais tarde me dando conta de que foi constante, embora inconsciente, a presença da Indesejada das Gentes, insinuando-se em armadilhas verbais como essas. Sempre, porém, o vento glacial se via amenizado pelo humor malicioso que formava parte essencial de personalidade austera, mas amante de "causos".
O "Diário" vem acompanhado de muita bagagem: artigos de Celso Lafer, de Sérgio Danese, que me auxiliou na viagem, conferências de imprensa, alguns improvisos, um posfácio do governador José Serra. Mas contém, sobretudo, uma evocação do avô pela neta Andréa, que é dos mais belos textos de saudade e carinho familiar que li, repassado de pungente nostalgia e misteriosa antecipação do luto, pois foi escrito e publicado antes da morte.
Tanto Andréa quanto Celso realçam o humor raro e fino de Tancredo, expressão da sabedoria com que administrava os desafios. Em Washington, as autoridades americanas, temerosas de que o final da era Pinochet, na época ainda incerto, pudesse favorecer os comunistas, propunham que se isolasse a esquerda na luta pela democracia. Com a experiência de quem acabava de viver um quarto de século de infindável ditadura, o presidente eleito comentou: "O que precisamos é dividir os militares, não a oposição; esta se dividirá de acordo com tendências naturais uma vez restabelecida a democracia".
Tempos atrás, em entrevista à TV, o neto Aécio, então meu quase adolescente companheiro de voo e de hospedagem, narrava haver perguntado ao avô, depois da estrondosa eleição no Colégio Eleitoral, como ele tencionava lidar com a maioria, quase unanimidade daquele apoio. A resposta foi: "Apoio é como capital, pretendo começar a gastá-lo para fazer o que tem de ser feito".
Foi esse o homem que começamos a perder 25 anos atrás amanhã, o dia que deveria ter sido o da sua posse, da "vida toda que podia ter sido e que não foi". Alegra pensar que, depois daquela longa noite, a cara do Brasil novo que se apresentou ao papa João Paulo 2º, a Mitterand, ao rei da Espanha, a Reagan, a Alfonsín tenha sido o rosto inteligente e arguto, o sorriso bem-humorado de Tancredo de Almeida Neves, a quem, com dona Risoleta, dedicamos este livro os companheiros retardatários que ainda não chegaram como eles à terceira margem do rio.

RUBENS RICUPERO, 73, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.



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