São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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OPINIÃO ECONÔMICA

Tragédia de erros

RUBENS RICUPERO

O assunto não é engraçado. Não merece ser chamado de comédia, nem por figura de retórica. No episódio do gás boliviano, o governo brasileiro tropeçou de erro em erro, cada um gerando o seguinte com mais gravidade. Deveria constituir um "caso para estudo" no Instituto Rio Branco, tal sua coerência de seqüência de equívocos não-contaminados por acertos. Vejamos.
1) O governo não acreditou que a nacionalização anunciada por Evo Morales era para valer. Terá pensado que, como aqui, não passava de bravata.
2) Após a eleição e a posse, não interpretou bem os sinais de radicalização emitidos pelo presidente, vice e ministro de Energia do país vizinho. Deixou-se enganar pelo discurso de duplicidade. Não tornou claro que, embora estivesse disposto a colaborar ao máximo com La Paz, não aceitaria violação dos direitos consolidados em tratados e acordos.
3) Uma semana antes, o secretário-geral do Itamaraty esteve na Bolívia e nada lhe disseram. Quando o raio tombou, o chanceler estava em Genebra, o presidente da Petrobras, no Texas, e o governo foi surpreendido de calças na mão.
4) A nota oficial do Planalto não formalizou protesto pela ação unilateral e violenta de infração de compromissos. Ao contrário, reconheceu descabidamente a soberania da Bolívia, isto é, seu direito de nacionalizar como se o ato não levasse à conseqüência de rasgar os compromissos com o Brasil. Esqueceu que a soberania, como a liberdade de cada um, termina onde começa a alheia, sobretudo quando ela foi usada no passado para assumir obrigações com o Brasil e a Petrobras. Foi incoerente com a "Carta ao Povo Brasileiro", em que se afirmou a importância de honrar os contratos.
5) Engoliu a absurda reunião a quatro, com a participação de Chávez, como Pilatos no Credo. Jogou fora a tradição de Rio Branco de que o Brasil não delega a terceiros a defesa de seus direitos. No caso do Acre, o Barão repeliu a pretensão peruana de negociar a três; primeiro resolveu o assunto com a Bolívia e só depois negociou com o Peru.
6) Depois da reunião, o presidente ainda falava em "carinho" e solapava a firmeza da Petrobras. Resignou-se a negociar sob pressão de tropas, com a Petrobras ocupada por funcionários bolivianos, ultimato de datas e ameaça de expulsão em caso de recusa de aumento de preços já anunciado de público na porcentagem e no montante. Compare-se com o Acre. Quando o presidente da Bolívia ameaçou reprimir a rebelião brasileira, Rio Branco declarou: "O sr. presidente Pando entendeu que é possível negociar marchando com tropas para o norte. Nós negociaremos também fazendo adiantar forças para o sul. O governo brasileiro continua pronto para negociar um acordo honroso e satisfatório para as duas partes".
O que fazer agora, depois que as declarações de Morales em Viena tripudiaram sobre a fraqueza brasileira? Preparar-se para o pior. Isso não quer dizer, como insinua com má-fé o governo, usar com a Bolívia do mesmo remédio ilegal e de força que ela usa conosco. Significa só defender o direito do Brasil com todos os meios legais e, se isso levar o mau vizinho a cortar o gás, tomar já medidas preventivas para atenuar o golpe. Entre elas:
1) Protestar contra todo ato e declaração violatórios de acordos e ofensivos às relações normais entre países. Indicar que a Petrobras só foi à Bolívia instada pelos dois governos, que celebraram em 17/ 2/92 um acordo para a compra do gás, seguido de contrato em 17/8/ 93 entre as duas empresas.
2) Lembrar que o contrato possui a cláusula 15, que prevê processo civilizado para negociar aumento de preço, que não foi seguido.
3) Exigir que a negociação se faça sem ameaça ou ultimatos. Não havendo acordo, acionar a cláusula 17, pela qual os conflitos serão submetidos a corte de arbitragem em Nova York, com multa para os violadores.
4) Elaborar plano de emergência para preparar a indústria e os consumidores para eventual suspensão de gás e anunciá-lo para que os bolivianos saibam que não aceitaremos chantagem.
Não precisamos ameaçar nem agredir a Bolívia. Com firmeza e equilíbrio, nosso direito acabará por prevalecer. Se não já, no futuro.


Rubens Ricupero, 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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