São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008

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RUBENS RICUPERO

Rezar pela Bolívia


Manter a tradição de paz do Brasil exige aceitar limites da possível ajuda para que os outros trilhem seu caminho


O BRASIL está em paz com seus dez vizinhos há exatamente 138 anos, 6 meses e 14 dias, desde que chegou ao fim, em 1º de março de 1870, a Guerra da Tríplice Aliança. Uma das razões para isso é a combinação de sóbrio realismo acerca do que podemos fazer para melhorar a situação dos países que nos cercam com a mais estrita não-ingerência em seus assuntos internos.
Entre esses países, a Bolívia é certamente um dos que mais precisam de ajuda. Ao mesmo tempo, as profundas divisões de sua sociedade condenam essa ajuda a se dissolver no ar ou ser vista como favorecendo uma das partes em confronto.
No início dos anos de 1980, a ditadura de Garcia Meza e de Arce Gómez ("arcesino" para os bolivianos) entregara o país à sanha de quadrilha de narcotraficantes. O subsecretário de Assuntos Interamericanos dos EUA, o falecido embaixador Thomas Enders, tinha vindo a Buenos Aires e Brasília a fim de persuadir os dois maiores vizinhos da Bolívia a fazerem "alguma coisa" a respeito.
Como o equivalente de Enders no Itamaraty, assisti à audiência que o visitante teve com o chanceler Saraiva Guerreiro. Foi um diálogo de surdos. O americano insistia em que não deveríamos "tolerar", como se voltou a dizer agora, a situação em La Paz. Não dizia claramente o que esperava de nossa parte, mas deixava entender que era alguma ação "musculosa".
Depois de explicar uma ou duas vezes por que não cogitávamos de nos afastar do princípio de não-ingerência, o ministro cansou e ficou silencioso. Desconcertado, o visitante exclamou em tom veemente não poder crer que fôssemos indiferentes à desgraça boliviana: "Não haveria nada, absolutamente nada, que pudéssemos fazer pela Bolívia?".
Abrindo os olhos semicerrados e depois de um profundo suspiro, o embaixador Guerreiro desfechou: "Mr. Enders, do you believe in God?" ("O senhor crê em Deus?"). Ante a balbuciante resposta afirmativa, o ministro prosseguiu: "Vamos então fazer uma oração pela Bolívia!" ("Let's pray for Bolivia!").
Não era sarcasmo ou insensibilidade. O ministro Guerreiro possui duas virtudes escassas nos atuais aprendizes de feiticeiros: é um sábio e conhece a Bolívia, onde serviu como jovem diplomata na época da violenta revolução dos mineiros do início dos 1950. Sabe que não se pode salvar alguém contra sua própria vontade.
O presidente Lula tem dado um bom conselho a seus belicosos colegas: sem paz interna, nada se constrói de sólido. Mas esse conselho é o máximo que pode dar. Não está em seu poder forçar os bolivianos a escolherem a paz, pretender que sabemos, melhor do que eles, o que convém à Bolívia.
Coerente com o conselho, no Brasil o presidente honrou os contratos e evitou radicalizar a luta social. É o contrário do que fazem os governos admirados pelos setores ideológicos de Brasília. Ao tomar partido no conflito interno boliviano, tais setores repetem o que criticam nos americanos: o uso do poder para impor soluções a outros países tal como ocorreu no Iraque.
A mesma gente que tolerou uma ilegalidade contra os interesses brasileiros -a expropriação do gás da Petrobras- declara não tolerar o que ora se passa apenas entre bolivianos. Manter a nossa tradição de paz exige defender os nossos direitos e aceitar os limites da possível ajuda para que os outros encontrem seu caminho.


RUBENS RICUPERO , 71, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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