São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

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ARTIGO

Acordos mundiais de comércio estão em beco sem saída

JOSEPH STIGLITZ

A recusa de um acordo por um bloco de emergentes na recente conferência comercial de cúpula em Cancún representou uma vitória para a democracia. Mas também indica o surgimento de uma ordem comercial diferente para melhor -ou para pior- da que foi construída ao longo das últimas décadas.
A tática dos negociadores norte-americanos em conferências de cúpula sempre funcionou assim: "Sabemos que os imensos subsídios que concedemos aos nossos fazendeiros não fazem sentido. Também estamos tentando nos livrar deles. Mas nossas mãos estão atadas, politicamente, pelo Congresso dos EUA. O que podemos fazer? Vamos chegar a um acordo sobre as demais questões, por exemplo o acesso aos mercados de capitais, e trataremos do comércio internacional de produtos agrícolas quando isso for viável em termos políticos".
Mas o que aconteceu em Cancún foi que democracias como Brasil, África do Sul e Índia retrucaram com o seguinte argumento: "Nossas mãos também estão atadas. Sem acordo. Se voltarmos para casa com um tratado, sob a OMC (Organização Mundial do Comércio), tão ruim quanto aquele que assinamos na Rodada Uruguai -e que nos custou empregos-, serão os nossos cargos que estarão em risco".
Antes de Cancún, os países em desenvolvimento vinham pressionando por um processo de negociação mais aberto e transparente. Mas os EUA e a Europa recusaram a idéia. Desde o começo, portanto, os países em desenvolvimento estavam preocupados com a possibilidade de que surgissem pressões para forçá-los a um acordo de último minuto.
A resposta de Washington ao fracasso em Cancún foi dizer que os países em desenvolvimento é que perderam e propor novos acordos bilaterais.
O multilateralismo é, evidentemente, o caminho a percorrer. Comércio simétrico em todos os mercados é a melhor solução. Nem os EUA poderão extrair muita vantagem de uma abordagem bilateral. Depois de trabalhar com muito afinco, pode ser que os norte-americanos consigam assinar acordos de livre comércio com a Costa Rica, Cingapura e Chile, o que não terá impacto algum sobre a economia dos EUA, por se tratar de países pequenos.
Mas, a não ser que os EUA mudem de posição quanto a algumas questões, pode ser que tenhamos chegado a um beco sem saída.
As tarifas americanas já são bastante baixas. O maior problema é a verdadeira legião de barreiras não-tarifárias, de taxas por dumping a tarifas de salvaguarda para o aço -consideradas ilegítimas pela OMC-, passando por "condições sanitárias insatisfatórias", no caso de alimentos importados. Nas negociações comerciais, os EUA, em geral, se recusam a discutir esses temas.
Existem áreas, além disso, em que os subsídios norte-americanos são um problema, como no caso da agricultura. As exportações de produtos agrícolas são muito importantes para os brasileiros. Assim, o que eles têm a ganhar com a assinatura de um acordo, caso suas commodities não possam competir nos EUA?
Em resumo, não há muito que os EUA estejam dispostos a conceder aos países em desenvolvimento nas áreas que os interessam, enquanto ao mesmo tempo exigem mais desses países, como a "liberalização dos mercados de capitais". Na prática, os EUA querem forçá-los a abrir suas economias ao tipo de fluxo especulativo de capital que foi fator crucial para a crise do Sudeste Asiático.
É verdade que, em Cancún, os EUA retiraram algumas dessas exigências na última hora. Mas, àquela altura, as posições já estavam solidificadas e o prazo para negociações já tinha esgotado.
Enquanto isso, a resposta dos países em desenvolvimento envolve procurar alternativas no chamado "comércio Sul-Sul", confiando em que haja mais espaço para comércio entre eles caso não consigam obter o acordo que desejam com o Norte.
Foi esse o significado da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à África do Sul, no começo de novembro.
Em teoria, evidentemente, há mais a ganhar com o comércio Norte-Sul, devido às diferenças em termos de vantagens comparativas. Mas, da mesma forma que o comércio Norte-Norte prosperou, não há dúvida de que o mesmo pode se aplicar às relações Sul-Sul. Há negociações comerciais em curso entre a China e os países da Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean) que lhe são vizinhos, e entre o Brasil, a África do Sul e a Índia.
O que está emergindo para substituir a velha abordagem multilateral, aparentemente, é um múltiplo fracionamento do sistema mundial de comércio.


Joseph Stiglitz recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2001. Seu mais recente livro é "The Roaring Nineties" [a fervilhante década de 90]. O artigo foi publicado originalmente na "News Perspective Quartely".

Tradução de Paulo Migliacci


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