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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Estão morrendo os velhos italianos

RUBENS RICUPERO

"Por toda a América", diz um poema de Lawrence Ferlinghetti, "os velhos italianos vêm morrendo, ano após ano." Com seus chapéus de feltro desbotados, as antiquadas botinas pretas, piemonteses, genoveses, sicilianos esperam sua vez, sentados nos bancos dos jardins, tomando um pouco de sol, e vão morrendo, um a um... Os meus velhos, da primeira geração nascida no Brasil, desapareceram há muito tempo. Meu tio Natale Pelosi, por exemplo, dono de açougue na rua E do Mercado Municipal. Apesar do ofício sanguinolento, tio Natale era a mais mansa das criaturas; como nos Salmos, a alegria do Senhor era sua força. Em paz com a vida e com o "sette e mezzo", que jogava à noite, sorvendo goles de sambuca e café, só perdia a calma quando o Palestra Itália, já desvirtuado em banal Palmeiras, dava vexames. Na época -Deus seja louvado pela misericórdia de tê-lo poupado das humilhações atuais- isso apenas sucedia de raro em raro e de forma moderada.
Perto do Mercado, do outro lado do Tamanduateí, ficava a rua Santa Rosa, feudo dos atacadistas de cereais. Eram quase todos "bareses", na realidade originários de Polignano a Mare, na Província de Bari. Gente do mar e da pesca na terra natal, converteram-se no Brasil em cerealistas ou dedicaram-se à distribuição e venda de jornais, ramo dominado também no Rio de Janeiro por meridionais, mas da Calábria. Os bareses de Polignano inauguraram uma das mais antigas quermesses e festas de igreja de São Paulo, a de São Vito Mártir, complementada por outra celebração de dois santos de sua localidade, Cosme e Damião, também mártires. Menino ainda, nos anos 40, comecei a ir à festa com meu pai, cuja família era também da Apúlia e da Província de Bari, mas de cidade diversa, Barletta, o que faz toda diferença em país conhecido pelo particularismo.
É curioso, paradoxal até, que os italianos do sul, censurados na Itália por falta de espírito associativo ou comunitário, tenham sido os únicos imigrantes peninsulares a conservar um mínimo de identidade, da personalidade cultural originária, não se dissolvendo de todo na geléia geral de São Paulo. Sem exceção, as comunidades de igreja que conheci no Brás de minha infância subsistem até hoje e são de meridionais, defendidos pela vizinhança do bairro. As quermesses, as festas, as vendas de pratos típicos, os jogos com brindes foram organizados, a princípio, a fim de levantar fundos para edificar e sustentar a igreja e acabaram ficando. Os de Polignano com a igreja de São Vito, os calabreses do Bexiga com Nossa Senhora da Achiropita, os napolitanos de Caserta ou Pozzuoli com a capela da Virgem de Casaluce, da rua Caetano Pinto, os igualmente napolitanos da rua da Mooca, igreja de San Gennaro. Mesmo no Rio, a igreja de São Francisco de Paula, que visitei em companhia do presidente Scalfaro, é ligada à comunidade calabresa.
Deixei São Paulo e o Brás há 45 anos e tudo praticamente desapareceu do meu tempo de menino. Menos as comunidades e festas de igreja. Vão morrendo os velhos, tal como na São Francisco de Ferlinghetti, os italianos de mãos nodosas e sobrancelhas cabeludas, esfarinhando o pão duro com os dedos para dar de comer aos pombos, os que gostavam de Mussolini, os que amavam Garibaldi, os velhos anarquistas leitores de "L'Umanità Nuova" e fiéis a Sacco e Vanzetti, cheirando a alho, pimentão, a grapa, quase todos já partiram. Ficaram poucos e, antes que esses se apaguem, é preciso recolher-lhes a memória.
É o que tenciona fazer Angela Di Sessa e seus companheiros, que se esforçam por meio dos depoimentos da história oral, da pesquisa de fotos amarelecidas e velhos jornais, a dar visibilidade, nas comemorações dos 450 anos de São Paulo, à "memória pulverizada" dos pugliesi e seus descendentes. Angela é fotógrafa de olho capaz de surpreender o encontro inesperado de cor e forma, de revelar a beleza do cotidiano pobre. Em 1994, fez uma exposição memorável, mostrando, lado a lado, como as imagens visuais da velha Polignano renasciam no coração de São Paulo. Oriunda da comunidade, ela conta com o apoio da Associação São Vito Mártir e da Associação Pugliesa de São Paulo para o projeto Santu Paulu. O nome vem do dialeto greco-salentino. A Apúlia saiu da pré-história quando os espartanos fundaram Taranto no 8º século antes de Cristo. Foi um dos principais esteios da Magna Grécia, quando Roma não passava de covil de salteadores. Ainda se fala grego em Gallipoli e em sete lugares de nomes sonoros -Castrignano dei Greci, Calimera, Melpignano-, onde se servem favas secas com queijo fresco de ovelha e se come a pasta de farinha rústica, a "incannulata".
Taranto é uma das cinco Províncias da Apúlia, a região que, a partir do sul, se estende por todo o calcanhar da bota itálica para o norte, passando por Brindisi, Lecce, a terra de Aldo Moro, Bari e Foggia. Campo de guerra milenar, foi nos arredores de Barletta, em Canna della Battaglia, que Aníbal esmagou as legiões romanas. Da Apúlia partiu a Primeira Cruzada, com o agigantado guerreiro normando Boemundo, Príncipe de Antioquia. Gregos, cartagineses e romanos, árabes, longobardos e bizantinos, normandos e suábios se sucederam nas terras férteis do Tavoliere della Puglia. Minha "nonna" Mariangela era a prova viva da herança normanda: porte de escandinava, os cabelos louros e finos, os olhos do azul lavado do extremo norte.
Passada a repressão fascistóide do Estado Novo, quando se proibiu falar italiano e se apagaram os nomes da pátria de origem, não faria mal a São Paulo uma pitada multicultural que ponha em evidência, no 450º aniversário da cidade, a riqueza e diversidade de origens e contribuições, de toda parte do Brasil e do mundo, das mulheres e homens que a construíram. Entre esses, os pugliesi figuram nas estatísticas como um dos contingentes menos numerosos dos italianos chegados ao Brasil, pouco mais de 30 mil, longe do meio milhão de vênetos. Deixaram, não obstante, sua marca inconfundível, guardaram um resto de identidade no meio do anonimato da metrópole. Num dia como hoje, 15 de junho, festa de São Vito Mártir, continuam a "re-cordar", isto é, a reviver no coração a imagem dos velhos ancestrais que nos deixaram, lutando contra a morte com a recusa do esquecimento. A memória é nossa única arma para inverter o sentido do processo natural e dar vida a nossos pais e avós, aos que ainda recordavam o perfume dos frutos natais e falavam os estranhos dialetos que desaprendemos. É o último e comovido tributo que podemos render aos nossos velhos italianos, agarrando-nos a essas queridas sombras pela lembrança, impedindo pela memória que o esquecimento os condene a morrer de novo.
 
Nota: quem se interessar pelo projeto poderá entrar em contacto com a coordenadora pelo e-mail: angeladisessa@uol.com.br.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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