São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Memórias da economia brasileira

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A caba de ser publicado o excelente livro didático do professor Dias Leite, "Economia Brasileira - De Onde Viemos e Onde Estamos", que reavivou minhas próprias memórias sobre o movimento da industrialização e do financiamento do período autoritário.
Dias Leite foi meu professor da disciplina de estrutura e organização industrial na Universidade Federal do Rio de Janeiro na década de 50 . Sendo um engenheiro com experiência em programação de longo prazo da base material da economia, sua posição "industrialista" era mais próxima da de Roberto Simonsen que da de Eugênio Gudin, apesar de sua grande admiração por este. Foi crítico consistente do Paeg (Programa de Apoio ao Ensino de Graduação), primeiro plano de estabilização do governo militar, e ministro de Minas e Energia do governo Médici, com Delfim Netto no Ministério da Fazenda, durante o período do "milagre econômico".
Minha visão do ciclo de expansão acelerada iniciado em 1968 está registrada na minha tese de titular "Ciclo e Crise", escrita no final de 1978. Nela já constam minhas críticas ao processo de endividamento externo e à correspondente "ciranda financeira" da divida pública interna indexada, antes mesmo que os choques externos de 1979 precipitassem o país numa das maiores e mais longas crises financeiras de nossa história.
Delfim Netto, no período de 1968 a 1973, aproveitou o último suspiro de crescimento internacional antes da ruptura definitiva do sistema de Bretton Woods e surfou na onda de liquidez internacional expandindo o crédito interno e o endividamento externo que alimentou o "milagre". Já Mário Henrique Simonsen (1974/79), enfrentando a primeira crise do petróleo e do balanço de pagamentos, forçou a captação de recursos externos, aumentando o diferencial entre os juros internos e externos. Sua política monetária levou às últimas conseqüências o nosso peculiar processo de moeda indexada e de ampliação do "overnight" e endividou substancialmente as empresas estatais, para cumprir as metas do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento).
Dias Leite esteve na minha banca de professor titular da UFRJ com o dr. Pedro Malan. Nenhum dos dois fez reparo algum ao capítulo financeiro da tese. Malan porque, naquela altura (já se vão 25 anos), estava de acordo e era um forte opositor de Simonsen e do "Growth cum Debt", do governo Geisel. Dias Leite também achava exagerada a "marcha forçada" do programa de infra-estrutura do 2º PND. As conseqüências que uma mudança na liquidez internacional e uma subida dos juros no mercado americano (já visível no governo Carter em 1978) teriam sobre o endividamento externo eram previsíveis e levaram Simonsen a retirar-se do governo às vésperas do desastre.
Desde a crise da dívida externa, tivemos de rolar várias vezes nossa dívida pública e privada com os bancos, a taxas de juro interno e externo altíssimas, o que tornou o serviço da dívida uma armadilha infernal e o ajuste fiscal e do balanço de pagamentos uma tarefa periodicamente perdida. Em "Depois da Queda - A Economia Brasileira da Crise da Dívida aos Impasses do Real" (Belluzzo e Almeida, 2002), temos uma visão das sucessivas crises financeiras e cambiais e da impotência das nossas políticas macroeconômicas.
Malan, que conduziu a "duras penas" a etapa final da reestruturação da dívida externa no período de 1992 e 1993, teve uma vida atribulada e contraditória como economista. Ao contrário dos velhos mestres (conservadores ou progressistas), teve de esquecer o que escreveu nos saudosos tempos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Ierj (Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro) e sustentar, como presidente do Banco Central e como ministro da Fazenda, as políticas cambial e monetária do Plano Real que levaram a um endividamento explosivo (desta vez "Debt sin Growth"). Malan terá muito o que contar, se alguma vez escrever as suas memórias, sobre as contradições da "inserção internacional" do país e da sua própria experiência no convívio com as elites de poder nacionais e internacionais.
Dias Leite, no final do livro, chega a algumas conclusões que endosso plenamente: a visão financeira dominante e as regras de "bom comportamento" com pretensões universais desviaram o pensamento econômico do final do século 20 para a ótica do curto prazo, facilitando a subordinação da expansão da base física da economia às regras do sistema financeiro e ao "stop and go" das políticas monetárias do Banco Central. Dos países em desenvolvimento, só 12 tiveram crescimento superior a 4% nas "duas décadas perdidas", dos quais 10 eram asiáticos e não aplicaram as regras do Consenso de Washington. O professor critica também o governo FHC, demonstrando que a estabilização do Plano Real levou o país a uma nova armadilha de vulnerabilidade externa.
Minha pergunta final em dezembro de 1978 era a seguinte: "Escaparemos ao vendaval não como uma ilha de prosperidade, mas como um baluarte da velha ordem, até que a nova se instaure lentamente?". Não escapamos ao vendaval que se avizinhava. O regime autoritário ruiu, mas entramos em hiperinflação. A "nova ordem globalizada" e as políticas neoliberais não nos foram favoráveis, situação que antevi no meu artigo de 1985 intitulado "Retomada da Hegemonia Americana".
De 1985 para cá, avançamos muito na transição para a democracia política, mas a retomada do desenvolvimento sustentado ainda não está à vista. Os problemas da dívida externa e da instabilidade do balanço de capitais se agravaram no fim do século 20 e no começo desta década. Os problemas de financiamento da infra-estrutura e das políticas públicas não estão resolvidos. Os da pobreza e da distribuição de renda continuam. No entanto ainda permanece válido o voto com que terminei a tese: "Só a fé na capacidade de sobrevivência e a afirmação democrática e nacional do nosso povo permitem esperar que se encontrem novos caminhos que substituam aqueles que se vão fechando com a crise da "velha ordem".


Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora associada da Universidade de Campinas e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br


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