São Paulo, segunda-feira, 15 de agosto de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Impeachment sem trauma

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

A crise política atual é de governo, não de Estado, e um impeachment não implicará maior crise: apenas fortalecerá a democracia. As revelações do publicitário Duda Mendonça de que foi obrigado a constituir empresa nas Ilhas Cayman para poder receber seus créditos na campanha de Lula em 2002 e as do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, afirmando que Lula estava a par do dinheiro que recebeu do PT, abrem caminho para o impeachment. Já não é mais minimamente possível acreditar que o sistema de suborno de deputados de outros partidos -organizado por homens diretamente ligados ao presidente- e o pagamento de despesas de sua campanha com recursos de e para contas "offshore" ocorressem sem que ele soubesse. Mesmo que não tenha arquitetado o sistema de corrupção, há aqui um problema, se não de conivência, ao menos de omissão.
Diante da probabilidade cada vez maior de impeachment, o deputado José Dirceu declarou que, como na Venezuela de Chávez, um processo de impeachment levaria o país à "convulsão social", enquanto o novo secretário-geral do PT, deputado Ricardo Berzoini, era mais modesto e falava em "crise econômica".
Embora a Bolsa e a cotação do dólar tenham reagido imediatamente às revelações de Duda Mendonça, não há razão para supor que uma crise política de governo resulte em uma crise econômica ou em trauma social. Há dois tipos de crise política -a de governo e a de Estado-, e só a segunda provoca crise econômica.
A última grande crise de Estado ocorrida no Brasil foi a de 1964, porque naquele momento o sistema capitalista -e, portanto, a própria estrutura do Estado- estava em risco. Em 2002, houve uma quase crise de Estado, porque os mercados financeiros, em nível nacional e internacional, ainda que equivocados, supunham que um regime chavista se implantaria no Brasil com a vitória de Lula. Hoje, a crise é grave, mas é de governo: não há risco para o sistema de propriedade e para a própria democracia.
Dada, entretanto, a popularidade que ainda resta a Lula -que não é desprezível-, poderia haver convulsão social como aquela que aconteceu na Venezuela quando uma oposição irresponsável procurou derrubar um presidente igualmente irresponsável? Essa é uma ameaça insubsistente. Se houver o início de um processo de impeachment no Brasil, não haverá nada nem longinquamente semelhante ao que aconteceu em Caracas.
Não é apenas porque a popularidade de Lula já está em queda. Segundo o Datafolha, desde que essa crise começou, as intenções de voto em Lula, quando comparadas com as de José Serra, caíram 11 pontos percentuais, e hoje ele já perderia no segundo turno por nove pontos percentuais. Não é também só porque não pesavam sobre Chávez indicações de corrupção comparáveis aos fatos escabrosos que estão caracterizando a crise do governo brasileiro.
Muito mais importante é o fato de que o Brasil não é uma Venezuela. O Brasil, sem dúvida, não é uma Suíça ou uma Suécia, nem mesmo uma França ou um Reino Unido, mas não é uma Venezuela, como esta não é um Haiti. Há graus de organização social e de desenvolvimento político. Os países desenvolvidos possuem Estados mais fortes e mais legítimos, porque apoiados em nações mais coesas e exigentes do que um país de desenvolvimento médio como Brasil, mas nós temos em nosso país uma economia, uma classe média, uma sociedade civil, um sistema jurídico-constitucional e um aparelho de Estado muito mais avançados do que os existentes na Venezuela. Conforme Eliane Cantanhêde escreveu há uma semana, "alguém precisa explicar ao presidente Lula e ao novo núcleo duro do Palácio do Planalto que o Brasil não é exatamente a Venezuela". Como os suíços criticam seu regime, apesar de sua excelência, nós criticamos o nosso, que está longe de alcançar aquela excelência, mas não devemos subestimar o grau de democracia e, portanto, de consistência do regime político que já alcançamos no nosso país.
Chávez é um político irresponsável que está desperdiçando de forma populista os recursos que o país obtém com os altos preços do petróleo, mas conta com o apoio da massa popular e de setores da classe média. Por outro lado, a oposição que o presidente da Venezuela enfrenta é corrupta, tendo sempre vivido das rendas do petróleo. Aqui, o quadro é completamente diferente, de forma que, se o impeachment for desencadeado, nada sugere que haverá uma convulsão social.
Pelo contrário, o que estou prevendo é que, em breve, começaremos a ter manifestações populares pelo impeachment. Muitas das quais partirão de ex-petistas indignados porque foram eles os mais diretamente traídos. Não importa que, para as classes dirigentes brasileiras, não haja interesse no impeachment. Na prática, a política não é ética, como estamos vendo tristemente neste momento, mas, no plano dos princípios, a política, diferentemente da economia, não se pauta apenas pelos interesses: os valores morais ou as virtudes republicanas são fundamentais. São esses valores que estão hoje em jogo.


Luiz Carlos Bresser-Pereira, 71, professor da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de "Desenvolvimento e Crise no Brasil: 1930-2002".
Internet: www.bresserpereira.org.br

E-mail - lcbresser@uol.com.br


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