São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A globalização como ela foi

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Num artigo publicado na sexta-feira, 13 deste mês, no jornal "Valor Econômico", o professor da Universidade Columbia e consultor financeiro Michael Pettis faz previsões aflitivas sobre a economia brasileira. Para ele, o Brasil precisa "preparar o palco para uma recuperação econômica o mais breve possível, e, para isso, os dirigentes do país precisam ter um plano que enfrente o problema da dívida no contexto das condições financeiras mundiais".
Pettis está convicto da necessidade de reestruturação da dívida em moeda estrangeira. Sem isso, argumenta, não haverá espaço para a queda dos juros, para a estabilização do câmbio e -não é preciso dizer- muito menos para a elevação das taxas de crescimento. Essa combinação nefasta, em sua opinião, impedirá uma trajetória sustentável do endividamento público interno, o que vai debilitar ainda mais a confiança dos investidores.
Podem-se comprar ou não os vaticínios de Pettis ao preço pelo qual ele os está vendendo. Ainda assim, recomenda-se, sobretudo às almas panglossianas, atentar para algumas observações registradas no tenebroso artigo do ilustre professor. Não são idéias especialmente originais e, por isso mesmo, nos tempos de hoje, talvez sejam importantes. Antes, porém, de entrar no assunto propriamente dito, cumpre lembrar: Pettis foi um dos raros analistas da metrópole a se dar conta da natureza profunda da assim chamada "globalização".
"A década de 90", diz ele, "foi um período de liquidez global historicamente alta, em que os investidores do mundo todo estavam dispostos a assumir riscos consideráveis para obter altos retornos. Sua disposição de assumir riscos os levou a mercados tão diversos como o novo e não testado setor de tecnologia, títulos de alto risco americanos e europeus, derivativos complexos e países em desenvolvimento".
Em meados dos anos 90, já deveria ser óbvio para os homens de boa-fé e inteligência mediana que a finança global estava prestes a criar uma "bolha" de proporções ciclópicas. Essa não foi, desgraçadamente, a percepção dos "renovados" da social-democracia à brasileira, que, a despeito das mentes brilhantes, enfiaram o pé na jaca sem dó nem piedade.
O Brasil e outros grandes países latino-americanos, até então submetidos às condições de ajustamento impostas pela crise da dívida externa de 82, foram literalmente capturados pela "bolha" financeira global. Todos executaram seus programas de estabilização de acordo com as normas dos mercados financeiros liberalizados, que corriam atrás de ativos que pudessem ser encampados pelo movimento geral de concentração e centralização do capital em escala mundial. Nesse rol, estão incluídos títulos da dívida pública, em geral curtos e de elevada liquidez, ações de empresas em processo de privatização, bônus e papéis comerciais de empresas e bancos de boa reputação e, posteriormente, ações depreciadas de empresas privadas, especialmente daquelas mais afetadas pela abertura econômica e pela valorização cambial.
Diante da inconversibilidade das moedas recém-estabilizadas, esses ativos deveriam prometer elevados ganhos de capital e/ou embutir prêmios de risco em suas taxas de retorno. Criou-se assim uma situação na qual a rápida desinflação é acompanhada por uma queda muito mais lenta das taxas nominais de juros. As taxas reais não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites estabelecidos pelos "spreads" exigidos pelos investidores estrangeiros para adquirir e manter em carteira um ativo denominado em moeda inconversível.
Nos portfólios dos grandes investidores dos mercados globalizados os ativos oferecidos pelas economias com histórias monetárias turbulentas são naturalmente os ativos de maior risco e, portanto, aqueles que se candidatam em primeiro lugar a movimentos de liquidação, no caso de mudanças no ciclo financeiro mundial. Independentemente do que possa ocorrer com o ciclo financeiro, os mercados emergentes também estão, em geral, mais sujeitos às alterações nas opiniões dos mercados quanto à sustentabilidade dos respectivos regimes cambiais. Isso significa que os seus processos de estabilização macroeconômica são indubitavelmente vulneráveis, em proporção direta ao grau de dependência do ingresso de recursos externos.
Pettis não tem nenhuma dúvida: "As condições mudaram dramaticamente nos últimos anos e é importante reconhecer que a mudança ocorreu de maneira permanente. (...) Esse processo parece não ter fim porque cada crise aumenta permanentemente a fragilidade do sistema. (...) Os investidores estão cada vez menos capazes de suportar a volatilidade e, à medida que se retiram, vai demorar mais para trazê-los de volta".
Em bom português: a "bolha" estourou. As vítimas preferenciais na nova era, a de aversão ao risco, serão os mais endividados, sejam empresas, indivíduos ou países.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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