São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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LUÍS NASSIF

O filho de Jacob do Bandolim

Freud pouco analisou a música popular brasileira. Praticamente não existem estudos mostrando a influência -muitas vezes massacrante- de pais famosos sobre filhos, ainda que talentosos.
No dia em que se inaugurar essa forma de abordagem, o primeiro capítulo será sobre Sérgio Bittencourt. Era um compositor talentoso, chegou a ser conhecido nacionalmente, em fins dos anos 60, como jurado do programa de Flávio Cavalcanti.
Compôs algumas modinhas que são peças obrigatórias em repertórios seresteiros. Mas teve o azar de ser filho de Jacob do Bandolim, um dos músicos mais talentosos e de temperamento mais terrível que a música brasileira jamais conheceu.
Jacob não perdoava ninguém que, mesmo de longe, pudesse se constituir em ameaça presente ou futura ao seu talento. O que não dizer das relações com o filho?
Lembro-me de Sérgio Bittencourt nas férias, indo tomar injeção na farmácia do meu pai em Poços de Caldas. Parece que namorava -ou havia se casado- com a filha de um fazendeiro de Machado ou Botelhos. Era hemofílico. Meu pai comentava os conflitos entre ele e Jacob. Não me lembro como ele soube. Apenas dizia que Sérgio era o "filho problemático" de Jacob.
Sérgio já era compositor dos maiores, mesmo antes de estourar com sua música mais conhecida, "Modinha" ("Olha a rosa na janela/ Tenho um sonho pequenino/ Se eu pudesse ser menino/ Eu pegava esta rosa"), que acabou se tornando a modinha mais conhecida, apesar do brilho inigualável das duas homônimas -a de Tom Jobim e a de Jayme Ovalle e Manuel Bandeira.
Pouco antes, a MPB havia enveredado por curto tempo por uma espécie de barroco estilizado, influenciado especialmente pelas canções do violonista Oscar Castro Neves ("Hoje a noite não tem luar/ Eu não sei como te encontrar") e do sátiro Juca Chaves.
Sérgio compôs dois clássicos, um dos quais era a canção preferida em nossas serenatas, a "Canção do Medo" ("Não, não vou/ Eu tenho medo/ De morrer de tanto amor"), interpretada pelas vozes afinadíssimas do Quarteto em Cy.
A imagem pública, no entanto, era do jurado irascível (como quase todo jurado) do programa Flávio Cavalcanti.
Embora pessoalmente Cavalcanti fosse um sujeito de boa índole (amparou a poeta e panfletária de esquerda Adalgisa Nery, em sua velhice, apesar de tido por direitista), o programa era um horror -verdadeira antecipação destes tempos atuais, em que se procura saciar um público sedento de sangue com julgamentos definitivos, maniqueísmo, falta de respeito pelas opiniões divergentes.
Talvez se explique pelos respectivos períodos econômicos, bastante semelhantes.
Independentemente dos componentes políticos (estava-se em plena vigência do AI-5), a segunda metade dos anos 60 foi caracterizada por intensas transformações no modelo econômico, como ocorre hoje, trazendo insegurança latente à toda opinião pública. Ninguém sabia qual seria seu papel no novo modelo.
Essa insegurança acentuava os movimentos de manada, a união contra qualquer inimigo externo ao grupo. A direita e a esquerda da época eram irmãs no mesmo autoritarismo e intolerância, como são hoje esses movimentos estúpidos de unanimidade permanentemente perseguidos pela mídia.
Lembro-me de um festival universitário da Tupi do qual participei, embora ainda estivesse no secundário.
Fernando Faro, o produtor, resolveu fazer um festival de vanguarda. Músicas tradicionais não teriam a menor chance. Inscrevi duas músicas sérias e uma galhofeira. Passou a galhofeira. No dia, decidimos entrar de mendigos no palco, porque sóbrios jamais ganharíamos aplausos -nem chance teríamos das vaias.
Entramos, a vaia foi ensurdecedora. Flávio Cavalcanti, o apresentador, pegou o microfone, falou algo como "não concordo com nada do que fazem, mas defenderei até a morte o direito que têm de fazê-lo". E aquela moçada universitária, politizada, que completava as fantasias políticas dos jovens secundaristas do interior, se curvou, se calou e não reagiu.
Caetano, Gil e Gal explodiram definitivamente com esse tribunal inquisidor que sufocava a MPB. Flávio Cavalcanti tornou-se parte do chamado "lixo da TV". E Sérgio Bittencourt acabou enterrado na sombra de seus dois pais: o verdadeiro e o artístico.
Hoje em dia, não existe roda de serestas -em qualquer cidade do país- que não toque composições suas. Especialmente sua derradeira despedida do pai, o reencontro que jamais ocorreu "Naquela Mesa" ("Naquela mesa está faltando ele/ E a saudade dele/ Está doendo em mim") -composto pouco antes da morte de Sérgio.
Mas a maldição freudiana continua. Na excelente "Enciclopédia da Música Brasileira" é possível encontrar Bernardino Leite, Lana, Lurdinha, Luís, Moacir e René Bittencourt.
A única menção a Sérgio é no verbete de Jacob do Bandolim, onde é rapidamente mencionado como "filho compositor".
E-mail - lnassif@uol.com.br


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