|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
O filho de Jacob do Bandolim
Freud pouco analisou a música popular brasileira. Praticamente não existem estudos mostrando a influência -muitas vezes massacrante- de pais
famosos sobre filhos, ainda que
talentosos.
No dia em que se inaugurar
essa forma de abordagem, o primeiro capítulo será sobre Sérgio
Bittencourt. Era um compositor
talentoso, chegou a ser conhecido nacionalmente, em fins dos
anos 60, como jurado do programa de Flávio Cavalcanti.
Compôs algumas modinhas
que são peças obrigatórias em
repertórios seresteiros. Mas teve
o azar de ser filho de Jacob do
Bandolim, um dos músicos mais
talentosos e de temperamento
mais terrível que a música brasileira jamais conheceu.
Jacob não perdoava ninguém
que, mesmo de longe, pudesse se
constituir em ameaça presente
ou futura ao seu talento. O que
não dizer das relações com o filho?
Lembro-me de Sérgio Bittencourt nas férias, indo tomar injeção na farmácia do meu pai
em Poços de Caldas. Parece que
namorava -ou havia se casado- com a filha de um fazendeiro de Machado ou Botelhos.
Era hemofílico. Meu pai comentava os conflitos entre ele e Jacob. Não me lembro como ele
soube. Apenas dizia que Sérgio
era o "filho problemático" de Jacob.
Sérgio já era compositor dos
maiores, mesmo antes de estourar com sua música mais conhecida, "Modinha" ("Olha a rosa
na janela/ Tenho um sonho pequenino/ Se eu pudesse ser menino/ Eu pegava esta rosa"), que
acabou se tornando a modinha
mais conhecida, apesar do brilho inigualável das duas homônimas -a de Tom Jobim e a de
Jayme Ovalle e Manuel Bandeira.
Pouco antes, a MPB havia enveredado por curto tempo por
uma espécie de barroco estilizado, influenciado especialmente
pelas canções do violonista Oscar Castro Neves ("Hoje a noite
não tem luar/ Eu não sei como
te encontrar") e do sátiro Juca
Chaves.
Sérgio compôs dois clássicos,
um dos quais era a canção preferida em nossas serenatas, a
"Canção do Medo" ("Não, não
vou/ Eu tenho medo/ De morrer
de tanto amor"), interpretada
pelas vozes afinadíssimas do
Quarteto em Cy.
A imagem pública, no entanto, era do jurado irascível (como
quase todo jurado) do programa Flávio Cavalcanti.
Embora pessoalmente Cavalcanti fosse um sujeito de boa índole (amparou a poeta e panfletária de esquerda Adalgisa
Nery, em sua velhice, apesar de
tido por direitista), o programa
era um horror -verdadeira antecipação destes tempos atuais,
em que se procura saciar um público sedento de sangue com julgamentos definitivos, maniqueísmo, falta de respeito pelas
opiniões divergentes.
Talvez se explique pelos respectivos períodos econômicos,
bastante semelhantes.
Independentemente dos componentes políticos (estava-se em
plena vigência do AI-5), a segunda metade dos anos 60 foi
caracterizada por intensas
transformações no modelo econômico, como ocorre hoje, trazendo insegurança latente à toda opinião pública. Ninguém
sabia qual seria seu papel no novo modelo.
Essa insegurança acentuava
os movimentos de manada, a
união contra qualquer inimigo
externo ao grupo. A direita e a
esquerda da época eram irmãs
no mesmo autoritarismo e intolerância, como são hoje esses
movimentos estúpidos de unanimidade permanentemente
perseguidos pela mídia.
Lembro-me de um festival
universitário da Tupi do qual
participei, embora ainda estivesse no secundário.
Fernando Faro, o produtor,
resolveu fazer um festival de
vanguarda. Músicas tradicionais não teriam a menor chance. Inscrevi duas músicas sérias
e uma galhofeira. Passou a galhofeira. No dia, decidimos entrar de mendigos no palco, porque sóbrios jamais ganharíamos aplausos -nem chance teríamos das vaias.
Entramos, a vaia foi ensurdecedora. Flávio Cavalcanti, o
apresentador, pegou o microfone, falou algo como "não concordo com nada do que fazem,
mas defenderei até a morte o direito que têm de fazê-lo". E
aquela moçada universitária,
politizada, que completava as
fantasias políticas dos jovens secundaristas do interior, se curvou, se calou e não reagiu.
Caetano, Gil e Gal explodiram
definitivamente com esse tribunal inquisidor que sufocava a
MPB. Flávio Cavalcanti tornou-se parte do chamado "lixo da
TV". E Sérgio Bittencourt acabou enterrado na sombra de
seus dois pais: o verdadeiro e o
artístico.
Hoje em dia, não existe roda
de serestas -em qualquer cidade do país- que não toque
composições suas. Especialmente sua derradeira despedida do
pai, o reencontro que jamais
ocorreu "Naquela Mesa" ("Naquela mesa está faltando ele/ E a
saudade dele/ Está doendo em
mim") -composto pouco antes
da morte de Sérgio.
Mas a maldição freudiana
continua. Na excelente "Enciclopédia da Música Brasileira" é
possível encontrar Bernardino
Leite, Lana, Lurdinha, Luís,
Moacir e René Bittencourt.
A única menção a Sérgio é no
verbete de Jacob do Bandolim,
onde é rapidamente mencionado como "filho compositor".
E-mail - lnassif@uol.com.br
Texto Anterior: Tendências internacionais - Gilson Schwartz: "Infoexclusão" ameaça Internet no Brasil e na AL Próximo Texto: Medicina: BC pode criar consórcios para cirurgias plásticas Índice
|