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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Dificuldades e contradições da política econômica
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
As armadilhas da política
econômica do governo FHC
ficaram manifestas no final de
1998, quando recorremos pela primeira vez ao FMI, e agravaram-se
no começo de 2001, quando voltamos ao Fundo. À crise financeira e
ao aperto da liquidez internacional seguiu-se a fuga de capitais
privados e um novo choque cambial e de juros que levaram a economia à beira da ruptura financeira a partir de maio de 2002.
A gravidade da situação obrigou o candidato Lula a assinar,
em junho de 2002, a "Carta ao Povo Brasileiro" e a concordar em
manter as metas básicas do acordo com o Fundo durante um período de transição, embora reafirmasse os principais pontos do programa de desenvolvimento do governo. Essa carta foi aprovada pela direção nacional do PT simultaneamente ao programa de governo. Ambos foram defendidos
na campanha, coisa que a imprensa e parte da chamada opinião pública esclarecida faz questão de ignorar.
A herança dos governos FHC,
em termos de desequilíbrios patrimoniais, era conhecida por sua
amplitude em matéria da dívida
pública interna, mas não a extensão e a profundidade dos desequilíbrios das empresas nacionais e
estrangeiras endividadas em dólares, sobretudo das que participaram do processo de privatização.
O setor elétrico é exemplar. Só depois da posse do novo governo foi
possível mapear o terreno minado
e começar a avaliar os estragos.
A outra herança é o movimento
contraditório das políticas macroeconômicas. O Banco Central
foi colocado a reboque da especulação em mercados financeiros
desregulados, com efeitos perversos sobre as necessidades de financiamento interno do setor público
e privado. Sobrevindas as crises
cambiais, o que a política fiscal fazia com uma mão (ajuste fiscal), a
política monetária desfazia com a
outra (subida dos juros e da dívida interna).
As dificuldades adicionais da
política macroeconômica na
atual conjuntura são as seguintes:
1) juros e câmbio altos realimentam a restrição fiscal obrigando a
superávits fiscais primários maiores do que os negociados com o
FMI, sem produzir uma entrada
autônoma ou compensatória de
capitais, como ocorria antes de
2001; 2) aumento da inflação provocado por fortes choques exógenos -petróleo, tarifas e preços internacionais das matérias-primas-, sobre os quais as políticas
convencionais têm pouco efeito.
Os choques de petróleo estão
sempre ligados às guerras no
Oriente Médio, mas, nesta conjuntura internacional, refletem
também a especulação em commodities provocada pela baixa taxa de juros americana e a desvalorização do dólar. O nosso saldo comercial tende a subir, na dependência de os preços das commodities acompanharem os movimentos dos preços do petróleo, o que
melhora o poder de compra das
exportações, mas pressiona os preços internos. As pressões inflacionárias exógenas rebatem sobre os
preços de produção dos produtos
agrícolas e, na ausência de estoques reguladores, atingem os consumidores. Os preços administrados também sofrem pressão
-tanto os dos combustíveis como
os dos serviços de utilidade pública das concessionárias privatizadas e endividadas em dólar.
A subida da inflação infla as receitas fiscais nominais e diminui
as despesas públicas em termos
reais, permitindo obter um superávit primário maior do que o
programado. Os salários dos servidores e outras despesas não-corrigíveis durante o ano fiscal serão os
mais atingidos. O serviço da dívida interna e a relação dívida/ PIB
pioram cada vez que há qualquer
elevação de juros nominais ou do
câmbio.
Em 2003, o Brasil contará basicamente com o fluxo de capitais
compensatórios dos organismos
internacionais, mas e em 2004? A
arbitragem nos mercados futuros
de câmbio e juros, sobretudo ante
a ameaça da guerra, pode conduzir a um novo aperto do crédito
externo, com a subsequente elevação dos juros reais. Um aumento
dos juros não melhora os fluxos líquidos de capital externo autônomo e piora a rolagem da dívida
das empresas privadas nacionais e
estrangeiras e o serviço da dívida
pública interna.
Estão em discussão as reformas
previdenciária e fiscal, também
com efeitos contraditórios a curto
prazo. A reforma da Previdência
tal como está proposta no Projeto
de Lei nš 9 pode agravar ainda
mais a crise fiscal, sem nenhum
efeito distributivo positivo ou de
inclusão social, o mesmo podendo
ocorrer com a reforma tributária.
A discussão bem informada poderia ajudar a esclarecer as inconsistências intertemporais e distributivas. Se for mal encaminhada
(em particular a questão dos funcionários públicos e dos fundos de
previdência complementar), a discussão poderá levar a aposentadorias precoces e à piora da situação fiscal a curto e médio prazos.
Por outro lado, os excluídos do
mercado formal de trabalho, que
são a maioria da população, só
podem ser abrangidos por políticas de seguridade social no sentido amplo, que, por sua vez, dependem de não esterilizar as contribuições sociais com despesas crescentes de juros.
Respostas de curto prazo para
amenizar a atual crise e políticas
compensatórias para os mais desfavorecidos são possíveis, mas não
eliminam a necessidade de desobstruir o caminho da "pedreira"
herdada do governo passado. A
excessiva "autonomia", ou, melhor dizendo, "dependência" do
Banco Central em relação ao mercado desregulado não ajuda em
nada a minorar o impasse presente. A manutenção da proposta de
desenvolvimento com a visão estratégica das políticas de inclusão
social podem ajudar a superar a
crise, desde que se sustente uma
política de produção, emprego e
distribuição de renda que mantenha o rumo durante e depois de
cada choque. Isso requer uma forte coordenação dentro do governo
e deste com a parcela da sociedade
que quer mudanças sem precedentes na história econômica e
política brasileira.
Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@cdsid.com.br
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