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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Dificuldades e contradições da política econômica

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

As armadilhas da política econômica do governo FHC ficaram manifestas no final de 1998, quando recorremos pela primeira vez ao FMI, e agravaram-se no começo de 2001, quando voltamos ao Fundo. À crise financeira e ao aperto da liquidez internacional seguiu-se a fuga de capitais privados e um novo choque cambial e de juros que levaram a economia à beira da ruptura financeira a partir de maio de 2002.
A gravidade da situação obrigou o candidato Lula a assinar, em junho de 2002, a "Carta ao Povo Brasileiro" e a concordar em manter as metas básicas do acordo com o Fundo durante um período de transição, embora reafirmasse os principais pontos do programa de desenvolvimento do governo. Essa carta foi aprovada pela direção nacional do PT simultaneamente ao programa de governo. Ambos foram defendidos na campanha, coisa que a imprensa e parte da chamada opinião pública esclarecida faz questão de ignorar.
A herança dos governos FHC, em termos de desequilíbrios patrimoniais, era conhecida por sua amplitude em matéria da dívida pública interna, mas não a extensão e a profundidade dos desequilíbrios das empresas nacionais e estrangeiras endividadas em dólares, sobretudo das que participaram do processo de privatização. O setor elétrico é exemplar. Só depois da posse do novo governo foi possível mapear o terreno minado e começar a avaliar os estragos.
A outra herança é o movimento contraditório das políticas macroeconômicas. O Banco Central foi colocado a reboque da especulação em mercados financeiros desregulados, com efeitos perversos sobre as necessidades de financiamento interno do setor público e privado. Sobrevindas as crises cambiais, o que a política fiscal fazia com uma mão (ajuste fiscal), a política monetária desfazia com a outra (subida dos juros e da dívida interna).
As dificuldades adicionais da política macroeconômica na atual conjuntura são as seguintes: 1) juros e câmbio altos realimentam a restrição fiscal obrigando a superávits fiscais primários maiores do que os negociados com o FMI, sem produzir uma entrada autônoma ou compensatória de capitais, como ocorria antes de 2001; 2) aumento da inflação provocado por fortes choques exógenos -petróleo, tarifas e preços internacionais das matérias-primas-, sobre os quais as políticas convencionais têm pouco efeito.
Os choques de petróleo estão sempre ligados às guerras no Oriente Médio, mas, nesta conjuntura internacional, refletem também a especulação em commodities provocada pela baixa taxa de juros americana e a desvalorização do dólar. O nosso saldo comercial tende a subir, na dependência de os preços das commodities acompanharem os movimentos dos preços do petróleo, o que melhora o poder de compra das exportações, mas pressiona os preços internos. As pressões inflacionárias exógenas rebatem sobre os preços de produção dos produtos agrícolas e, na ausência de estoques reguladores, atingem os consumidores. Os preços administrados também sofrem pressão -tanto os dos combustíveis como os dos serviços de utilidade pública das concessionárias privatizadas e endividadas em dólar.
A subida da inflação infla as receitas fiscais nominais e diminui as despesas públicas em termos reais, permitindo obter um superávit primário maior do que o programado. Os salários dos servidores e outras despesas não-corrigíveis durante o ano fiscal serão os mais atingidos. O serviço da dívida interna e a relação dívida/ PIB pioram cada vez que há qualquer elevação de juros nominais ou do câmbio.
Em 2003, o Brasil contará basicamente com o fluxo de capitais compensatórios dos organismos internacionais, mas e em 2004? A arbitragem nos mercados futuros de câmbio e juros, sobretudo ante a ameaça da guerra, pode conduzir a um novo aperto do crédito externo, com a subsequente elevação dos juros reais. Um aumento dos juros não melhora os fluxos líquidos de capital externo autônomo e piora a rolagem da dívida das empresas privadas nacionais e estrangeiras e o serviço da dívida pública interna.
Estão em discussão as reformas previdenciária e fiscal, também com efeitos contraditórios a curto prazo. A reforma da Previdência tal como está proposta no Projeto de Lei nš 9 pode agravar ainda mais a crise fiscal, sem nenhum efeito distributivo positivo ou de inclusão social, o mesmo podendo ocorrer com a reforma tributária. A discussão bem informada poderia ajudar a esclarecer as inconsistências intertemporais e distributivas. Se for mal encaminhada (em particular a questão dos funcionários públicos e dos fundos de previdência complementar), a discussão poderá levar a aposentadorias precoces e à piora da situação fiscal a curto e médio prazos. Por outro lado, os excluídos do mercado formal de trabalho, que são a maioria da população, só podem ser abrangidos por políticas de seguridade social no sentido amplo, que, por sua vez, dependem de não esterilizar as contribuições sociais com despesas crescentes de juros.
Respostas de curto prazo para amenizar a atual crise e políticas compensatórias para os mais desfavorecidos são possíveis, mas não eliminam a necessidade de desobstruir o caminho da "pedreira" herdada do governo passado. A excessiva "autonomia", ou, melhor dizendo, "dependência" do Banco Central em relação ao mercado desregulado não ajuda em nada a minorar o impasse presente. A manutenção da proposta de desenvolvimento com a visão estratégica das políticas de inclusão social podem ajudar a superar a crise, desde que se sustente uma política de produção, emprego e distribuição de renda que mantenha o rumo durante e depois de cada choque. Isso requer uma forte coordenação dentro do governo e deste com a parcela da sociedade que quer mudanças sem precedentes na história econômica e política brasileira.


Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail -
mctavares@cdsid.com.br


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