São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

O olhar do embaixador

Conheci o embaixador no dia em que procurava meu pai. O velho tinha morrido fazia algum tempo e me deu vontade de reencontrá-lo, reconstituindo a Poços de Caldas de seu tempo. Estava imerso nesses pensamentos num coquetel no Museu de Arte Moderna, quando vi o embaixador Walter Moreira Salles entrar, acompanhado do filho Pedro. Agora, com a imagem de Poços projetada na campanha de 80 anos do seu Unibanco, as lembranças voltam à tona.
Já tinha tomado dois copos de vinho, o que presumo tenha ajudado. Porque bati o olho e entendi que ele tinha a chave não só do conhecimento sobre Poços daquele tempo, mas sobre o Brasil desde então. Fui até ele, me apresentei e propus ser seu biógrafo. O embaixador me olhou surpreso, nem me conhecia, mas pediu um tempo para pensar. Dias depois, Pedro me disse que ele topara. Houve algumas confusões, mas, após alguns meses, o trabalho começou.
Teve início ali uma relação que me abriria não apenas as portas da compreensão do país, mas dos próprios mecanismos do poder mundial. E muito mais, princípios básicos de cultura, de direitos individuais, fundamentos da civilização, que me eram repassados em cada conversa, em cada entrevista, com a objetividade dos que sabem identificar o relevante.
Mês após mês, dentro da estrutura precária que montara, o embaixador ia desfilando fatos, explicações, personagens. Várias vezes me pediu para registrar o que pensava de cada homem público com quem conviveu, da admiração por Getúlio à reserva com JK, das mágoas com Carlos Lacerda à amizade com Horacio Lafer. Seu legado seriam suas explicações para o país que teimava em não dar certo e o julgamento sobre os homens do seu tempo.
Na hora de relatar episódios públicos, era capaz de acertar cada data, lembrar cada frase. Quando se tratava dos negócios, tinha que recorrer a seu amigo Homero Souza e Silva, que saiu com ele de Poços para conquistar o Brasil.
Eu bebia cada explicação, cada história, sua incomparável capacidade de "utilizar bem as poucas coisas que conheço", como ele mesmo dizia. Não era um intelectual. Mas era capaz de reconhecer, à primeira vista, o conceito sociólogo inovador, a interpretação histórica mais relevante.
Foi essa sensibilidade que permitiu ao homem de negócios identificar os setores pioneiros da economia e fazer as apostas certas. Ou aprender os segredos do novo mercado de câmbio e de títulos internacionais com os financistas europeus que se exilaram no Rio na Segunda Guerra Mundial.
Depois de certo tempo, a figura pública foi refluindo e dando lugar ao homem. E aí, o empresário reservado, o mais fechado dos homens públicos de seu tempo, mostrou a verdadeira face, a extrema sensibilidade que escondeu atrás de um muro qualquer que se levantou ainda na infância. Contou dos medos da infância, do primeiro susto da adolescência, da paixão pela avó, pelo tio juiz, da admiração pelo pai.
Certo dia minha vida virou de pernas para o ar e tive que interromper a biografia. Antes que pudesse retomá-la, o embaixador morreu. Mas levarei para sempre os ensinamentos que me passou. E uma cena especial ficará indelevelmente na minha memória. Foi num certo dia, depois de um almoço que se estendeu até o finalzinho da tarde. Perguntei de sua mãe, da qual ele pouco falava.
Ele parou, olhou o dia que começava a sumir, e começou a falar da mãe, da doçura que transmitia. Os olhos ficaram úmidos. Não tinha à minha frente um dos mais influentes brasileiros do século, mas um órfão de 80 anos.
E entendi, ali, o seu Rosebud, aquela pequena soma de episódios indeléveis que marcam a pessoa, logo na infância, e que acabam empurrando-a para frente e determinando toda a sua vida. Outro dia sonhei com ele, como se despedindo, com aquele olhar carinhoso com que me conduzia até o elevador.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


Texto Anterior: Negócios: Oracle reduz oferta pela PeopleSoft
Próximo Texto: Jogo de números: Ministério do Trabalho diz que é preciso ampliar dados
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.