São Paulo, Quinta-feira, 16 de Setembro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Um precedente perigoso?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Um economista brasileiro nunca pode ficar inteiramente sossegado. A semana ameaçava começar bem com a entrevista concedida no domingo à Folha por Andrea Calabi, presidente do BNDES. Calabi reconheceu que, no Plano Real, a economia brasileira passou "por uma desnacionalização muito acentuada" e afirmou enfaticamente que, "agora, o foco do BNDES são as empresas nacionais".
A ênfase de Calabi foi confirmada pelo novo ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias. Em seu discurso de posse, anteontem, Tápias anunciou que está "determinando que o BNDES estabeleça uma prioridade absoluta para o fortalecimento da empresa privada nacional".
Ah, mas alegria de subdesenvolvido dura pouco. Na segunda-feira, entrou em vigor a resolução 2.644 do Banco Central, que autoriza certos tipos de investidores a abrir contas bancárias em moeda estrangeira dentro do país. A decisão preocupa, pois pode ser um passo na direção do enfraquecimento da moeda nacional.
É verdade que a medida tem caráter seletivo. Beneficia apenas as empresas encarregadas da implementação de projetos nas áreas de energia elétrica, petróleo e gás natural. Estabelece, também, restrições à movimentação das contas em moeda estrangeira. Por exemplo, as contas só podem acolher receitas decorrentes da venda de petróleo, gás natural ou energia elétrica, deduzidos os valores relativos ao custeio da atividade, os impostos devidos e as demais despesas a ser realizadas no país.
Mesmo assim, a decisão pode representar um precedente perigoso. Segundo consta, a intenção é oferecer às empresas interessadas no processo de privatização da área energética garantias contra os riscos de flutuações mais acentuadas da taxa de câmbio. As demais empresas perguntarão, naturalmente, por que só esses investidores têm o privilégio de abrir contas em moeda estrangeira dentro do país. Por que não os exportadores, por exemplo, que também enfrentam os ônus associados às flutuações cambiais?
Não existe o risco de que, aberta essa brecha, outros setores pressionem e consigam do Banco Central a autorização para dolarizar as suas aplicações bancárias no Brasil? É claro que estamos longe da situação da Argentina, onde vigora desde 1991 um sistema bimonetário, com plena sanção legal. Mas nunca é demais lembrar as imensas dores de cabeça que o uso interno da moeda estrangeira, dentro do sistema financeiro e nos contratos da economia, tem causado à política econômica argentina.
Há outro motivo de preocupação. Ao apresentar a resolução 2.644 à imprensa, o diretor de assuntos internacionais do Banco Central, Daniel Gleizer, resolveu declarar, também, que o objetivo de longo prazo do atual governo é avançar na liberalização cambial, inclusive da conta de capitais, até chegar à livre conversibilidade do real.
Em que mundo será que vive esse cidadão? Não registrou o que aconteceu nos últimos anos com países que liberalizaram demais a sua conta de capital? Ainda não se deu conta de que, dada a dimensão e instabilidade dos fluxos financeiros internacionais, um país em desenvolvimento não deve patrocinar ampla abertura da sua conta de capitais e, muito menos, marchar para a livre conversibilidade?
Vamos admitir (para não levantar hipóteses piores) que esse diretor do Banco Central seja um pouquinho distraído. Nos próprios centros financeiros internacionais, já não se defende com a mesma convicção a liberalização dos movimentos de capital em economias menos desenvolvidas.
Até o Fundo Monetário Internacional manifestou, em mais de uma ocasião, as suas dúvidas sobre esse tema. Por exemplo, em relatório recente sobre a economia mundial ("World Economic Outlook", maio, 1999), o FMI fez referências positivas, embora cautelosas, aos controles de capital aplicados pela China e pela Índia. No caso da China, segundo o relatório, as pressões financeiras decorrentes das crises em alguns "mercados emergentes" foram de curta duração, "refletindo em parte a manutenção de controles sobre as transações na conta de capitais". Na Índia, "controles de capital, embora acarretando custos a prazo mais longo, parecem ter ajudado a limitar a vulnerabilidade a movimentos abruptos de capital de curto prazo", comentou o FMI.
A experiência internacional recente revela que é muito arriscado autorizar a circulação interna da moeda estrangeira e liberalizar os movimentos de capital. O Brasil precisa, ao contrário, inverter a excessiva liberalização ocorrida nessa área nos anos 90. Se não o fizer, correrá o risco de experimentar uma excessiva volatilidade da taxa de câmbio que poderá voltar a ameaçar a estabilidade da economia e, no limite, até mesmo a sobrevivência da moeda nacional.
Por isso é que eu sempre peço e repito e volto a pedir (e desculpem a insistência): pelo amor de Deus e pela Santíssima Trindade: CONTROLEM OS MOVIMENTOS DE CAPITAL!


Paulo Nogueira Batista Jr., 44, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net



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