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17 horas de trabalho por casa e comida
Antônio Gaudério/Folha Imagem
| Jovem boliviano faz curso de corte e costura em La Paz, onde os imigrantes se preparam para trabalhar no Brasil |
Repórter-fotográfico trabalha com bolivianos e revela exploração de mão-de-obra clandestina em SP
O repórter-fotográfico Antônio Gaudério, 49, foi à Bolívia munido de celular com câmera para descobrir como funciona o tráfico de mão-de-obra ilegal que alimenta a
cadeia têxtil em São Paulo. Como um dos milhares de
bolivianos que buscam emprego no Brasil para fugir da
miséria em seu país, trabalhou no Brás (SP) até 17 horas
por dia produzindo peças de roupas que abastecem
grandes lojas do comércio brasileiro. Os bolivianos trabalham em troca de comida e moradia ou, no máximo, alguns centavos por hora.
Até 1.500 bolivianos chegam por mês
Com salários baixos e jornadas de até 17 horas diárias, mão-de-obra irregular abastece confecções paulistas
Para fiscais, condições de trabalho são degradantes; lojas se comprometem a romper com fornecedores que não respeitam a lei
CLAUDIA ROLLI
FÁTIMA FERNANDES
DA REPORTAGEM LOCAL
Entre 1.200 e 1.500 bolivianos chegam por mês ao Brasil
em busca de emprego. A maior
parte encontra trabalho em pequenas confecções e oficinas
clandestinas de costura já identificadas em 18 bairros e cidades da Grande São Paulo, como
Bom Retiro, Pari, Brás e Itaquera, e ao menos em oito municípios do interior paulista.
Fiscalizações feitas pela DRT
(Delegacia Regional do Trabalho) de São Paulo e pelo MPT
(Ministério Público do Trabalho) encontraram indícios de
que a mão-de-obra irregular
desses migrantes é utilizada
por confecções que são -ou foram- fornecedoras de grandes
redes de varejo do país.
Nos últimos dois anos, uma
CPI da Câmara Municipal de
São Paulo convocou representantes das lojas Marisa, Riachuelo, Renner e C&A para
prestar esclarecimentos depois
que etiquetas de suas marcas
foram encontradas em oficinas
irregulares da capital.
As quatro redes já firmaram
compromisso com o MPT nos
últimos quatro meses, além de
desenvolverem programas para fiscalizar fornecedores e não
comprar de confecções que
empregam mão-de-obra estrangeira irregular. As lojas informam ainda que realizam auditorias periódicas e exigem o
cumprimento da lei trabalhista
e respeito à dignidade humana.
Procuradores do Trabalho
investigam 147 processos abertos para apurar denúncias envolvendo a exploração dos bolivianos em confecções paulistas
-84 já viraram TACs (Termos
de Ajustamento de Conduta)
nos últimos dois anos.
Neles, os empregadores se
comprometeram a não contratar mais estrangeiros em situação irregular e a não submetê-los a condições degradantes de
trabalho, como jornadas excessivas em locais que oferecem
risco à saúde e à segurança.
"Os bolivianos fazem jornadas muito acima da lei [permite
até dez horas diárias], ganham
centavos por peça produzida e
moram no local de trabalho.
São vários adultos e crianças
alojados em um mesmo cômodo, muitas vezes sem ventilação, com fiação aparente oferecendo riscos", afirma a procuradora Vera Lúcia Carlos.
Pelo artigo 149 do Código Penal, é crime reduzir uma pessoa
à condição análoga à de escravo. "Se ficar provado que o trabalhador é submetido a jornadas exaustivas, ou a condições
degradantes, ou que seu direito
de ir e vir está sendo privado
porque ele tem uma dívida com
o empregador, está caracterizado o crime. Não é necessário
que ele esteja acorrentado para
provar essa condição", diz Marcos Fava, juiz do Trabalho. A
pena prevista é de dois a oito
anos de cadeia, além de multa.
Obstáculos
Para dificultar a fiscalização,
as oficinas funcionam em casas
ou falsos estabelecimentos comerciais. Em Americana, o sindicato das costureiras da região
identificou uma confecção,
montada em um área que pertencia a uma igreja, com cerca
de 30 bolivianos irregulares.
"A placa da igreja continua
no local para disfarçar a oficina.
Já acionamos os fiscais", afirma
Carmelita Alves Braga, presidente do sindicato.
Na Barra Funda, blitz acompanhada pela Folha há três
meses flagrou uma casa em que
trabalham duas famílias bolivianas, a maior parte, irregular.
Na fachada, há duas placas: de
um médico e de um advogado.
Paulo Jesus de Souza Filho,
delegado do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), diz que a divisão
recebe em média duas denúncias por mês de exploração de
estrangeiros irregulares no
Brasil -geralmente vizinhos
incomodados com o barulho
das máquinas de costura.
No Centro de Apoio ao Migrante (do Serviço da Pastoral
dos Migrantes, ligado à CNBB),
são 15 a 20 denúncias por mês.
"Donos de oficinas e de confecções já foram presos após
ter sido feito o flagrante. Como
o crime é inafiançável, alguns
já chegaram a ficar presos por
duas semanas enquanto aguardavam o pedido de liberdade
provisória. Depois, a maior
parte responde ao processo em
liberdade", diz o delegado.
Considerados os últimos oito
anos, não chega a cem o número de inquéritos encaminhados
pela Polícia Civil para combater o trabalho análogo à escravidão, segundo a Folha apurou.
Ação conjunta
Na zona norte de São Paulo,
policiais encontraram uma
adolescente e dois bolivianos
que eram trancados na oficina.
Há casos em que patrões
apreendem documentos para
evitar que fujam e outros em
que os estrangeiros pagam o
prato de comida com trabalho.
Casos como esses podem ser
denunciados pelo telefone 181.
Para Márcia Ruiz, delegada e
representante do comitê paulista de combate ao tráfico de
seres humanos, a ação não deve
ser apenas policial. "É uma
questão social complexa, porque os bolivianos irregulares
não querem retornar porque
dizem que aqui não passam fome. É preciso conscientizar os
que estão sendo explorados e
que todas as entidades envolvidas ajam de forma conjunta."
Antes explorados por patrões
sul-coreanos, os bolivianos
agora são subordinados a compatriotas que conseguiram se
regularizar e montar oficinas.
"Eles não se consideram vítimas de exploração", diz José
Marcio Lemos, da Delegacia de
Imigração da PF em São Paulo.
A situação dos bolivianos só
não é pior, avalia Paulo Illes,
coordenador do Centro de
Apoio ao Migrante, porque 20
mil bolivianos (42 mil, segundo
o Ministério da Justiça) conseguiram pedir a regularização de
sua situação por meio de acordo entre Brasil e Bolívia.
"Mas a cobrança de taxas elevadas e a multa de até R$ 828
para quem está sem visto dificulta o processo." Estima-se
que 160 mil bolivianos vivam
no Estado de São Paulo, sendo
100 mil irregulares.
"É um problema da globalização econômica. A desigualdade regional faz com que as
pessoas migrem em busca de
uma situação melhor", diz Sérgio Suiama, procurador do Ministério Público Federal de São
Paulo. "É preciso discutir políticas migratórias, rever o estatuto dos estrangeiros e garantir
a esses trabalhadores direitos
fundamentais básicos, como o
direito ao trabalho."
Ouça o podcast de Antônio Gaudério na Folha Online e, na quinta, bata um papo com ele (www.folha.com.br)
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