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O preço de um vestido
Com jornadas diárias de 17 horas em troca de cama e comida, imigrantes bolivianos vivem rotina de trabalho degradante e superexploração nas confecções de roupa de São Paulo
Para entender como funciona o tráfico de mão-de-obra e como vivem os milhares de imigrantes ilegais
bolivianos de São Paulo, o repórter-fotográfico Antônio Gaudério deslocou-se para La Paz com um telefone celular dotado de câmera fotográfica, uma
muda de roupas e seus documentos brasileiros. Procurou anúncios de trabalho, conversou com agenciadores e até se diplomou como overloquista em
uma escola de La Paz. Tudo para ser aceito em uma
das centenas de confecções controladas por bolivianos e coreanos que existem em São Paulo. Gaudério
submeteu-se a jornadas de trabalho de 17 horas.
Sem nenhum direito trabalhista, ele teve que aceitar
um contrato verbal pelo qual trabalharia três meses
sem salário, apenas em troca de cama e comida. "Depois a gente conversa", disse-lhe o chefe.
Antônio Gaudério/Folha Imagem
| Em ônibus com passageiros dormindo até no corredor, viajo de La Paz a Santa Cruz de la Sierra, passando por Cochabamba |
ANTÔNIO GAUDÉRIO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICO
16/11 - A CHEGADA
Começo por El Alto, cidade
adjacente a La Paz, onde funciona um imenso mercado do
tamanho de 350 campos de futebol, em que se compra e vende tudo: de mapas velhos escritos em japonês a velhas Mercedes-Benz e fetos de lhamas,
usados em rituais de feitiçaria.
No setor de usados, compro
calça, camisa, sapatos, pente,
espelho de bolso e um pote de
gel Didazul extra fuerte. Reparto meu cabelo ao meio, como o
presidente Evo Morales e todos
os imigrantes bolivianos que
conheci no bairro do Brás, em
São Paulo.
Compro um rádio e sintonizo
nos 6.080 kHz da emissora católica São Gabriel. O locutor se
expressa em amará e quéchua,
línguas de origem indígena. Parece um disco em espanhol rodando ao contrário. Consigo
entender "costurero", "overloquista", "Brasil" e os números
dos telefones. Anoto e tento me
candidatar, mas, nos primeiros
tropeços do espanhol, as vagas
desaparecem.
21/11 - A BUSCA
Volto para La Paz e me hospedo em um alojamento com
diária de 25 bolivianos, cerca de
R$ 6, na avenida Buenos Aires.
A região é centro de comércio
popular durante o dia e esconderijo de traficantes, drogados,
bêbados, prostitutas e ladrões à
noite. Entre cartazes que anunciam "Atenção, doadores de
rim. Compramos o seu por até
US$ 4.000", encontro ofertas
de vagas para costureiros com
ou sem experiência que queiram trabalhar no Brasil ou na
Argentina: "Buen sueldo. US$
150. US$ 200 [mensais]".
Ao cabo de seis dias, estou
exausto, sem dormir, nauseado, com dor de cabeça, por causa do "mal de altitude" (La Paz
fica 3.600 m acima do nível do
mar). Piora a situação uma
diarréia causada pelo pão com
terra, frango com terra, suco de
laranja com caldo de mão suja,
tudo vendido na rua poeirenta.
Aparência miserável, estou
no ponto. Vou à rua Albaroa,
195, falar pessoalmente com
Julia Fernandes, dona do
anúncio "Necessito costureiros
para o Brasil. Ambos os sexos.
Buen Sueldo".
Mais ou menos 60 anos, dona
Julia é simpática. Fica acertado
que me arrumará o emprego e
que eu viajarei para o Brasil
com um casal dentro de três ou
quatro dias. Pela porta estreita
entreaberta do quarto escuro,
vejo um vulto de boliviano gordo que nos observa, imóvel.
Não dá certo. Dona Julia Fernandes some dois dias depois
de nossa conversa.
Procuro outro anúncio, que
promete "sueldo" de US$ 200
mensais. Ao telefone, um homem de voz grossa e forte encerra minhas pretensões avisando: "Só contratamos bolivianos legítimos para trabalhar
para coreanos. Não ligue mais".
O jeito é apelar para os anúncios que havia recolhido em São
Paulo, na feira Cantuta, no Pari,
onde se reúnem aos domingos
os bolivianos. Com a ajuda de
uma paceña (mulher nascida
em La Paz), consigo duas promessas de ser recolhido na rodoviária ao chegar a São Paulo e
as dicas necessárias:
Dizem-me que devo viajar
via Ciudad del Este, no Paraguai, porque a fiscalização em
Corumbá (MS) está muito rigorosa. Também me orientam a
fazer um curso de costura.
23/11 - NA ESCOLA
No Instituto Berlin, a 500
metros do meu alojamento, o
curso normal de corte e confecção dura três meses. Em caso
de urgência, pode ser feito em
um mês. No meu caso, de extrema urgência, em uma semana,
com aulas das 10h30 às 21h.
Pago 80 bolivianos (R$ 19) e
assisto a três aulas com 11 outros alunos, alguns aspirantes a
vagas em São Paulo e Buenos
Aires. Deles ouço histórias de
preconceito dos argentinos,
que chamam os bolivianos de
índios "bolitas" e "bolitas de
mierda" e sabotam-lhes o trabalho. Dizem que, quando chega um boliviano, os costureiros
argentinos arrancam as linhas
das máquinas. São três ou quatro linhas que passam por cerca
de 20 engates até chegar às agulhas. Em cada marca de máquina esse caminho é diferente.
Qualquer erro no percurso não
costura.
27/11 - A VIAGEM
Viajo de ônibus para Santa
Cruz de la Sierra, onde pegarei
o trem até a fronteira. Mas uma
greve geral "democrática y contundente" convocada pelo presidente Evo Morales paralisa os
transportes. Protestos pró e
contra a nova Constituinte já
contam com o saldo de dois cachorros degolados e duas pessoas mortas. Encontro Cleto
Fernandes, seu filho Ariel e René Monzon.
Pai e filho pretendem que essa seja a última vez que trabalham como costureiros em São
Paulo. O objetivo deles é levantar US$ 1.500, para fazer funcionar uma padaria em La Paz.
Já Monzon, cansado de ganhar
pouco como costureiro, tornou-se camelô em São Paulo.
Ele passa toda a viagem tentando me convencer a ser seu sócio
em um "churrasco grego" na
zona central de São Paulo.
Dormimos na calçada da estação para viajar na manhã seguinte. No guarda-volumes,
com a autorização do rapaz que
guarda as malas, plugo meu celular para carregá-lo na única
tomada de toda a estação de
trem de Santa Cruz. Chega o
supervisor, olha minha aparência e pergunta: "Vai pagar?".
Eu digo: "Pago. Quanto é?".
"5 bolivianos", responde o
supervisor gordo com o braço
estendido e a mão gorda espalmada. O valor é quase o dobro
dos 3 bolivianos cobrados para
guardar uma mala por 24 h.
"Tudo bem, eu pago."
"E espere lá fora."
Espero uma hora. Ao desligar
da tomada, pergunto se posso
pagar ao retirar a mala.
"Não. Tem que pagar agora."
Aí, permito-me uma vingança em nome de todos os miseráveis humilhados em troca de
pequenos favores. Pego uma
moeda de 5 bolivianos, que vale
pouco mais de R$ 1, e digo:
"Este lixo é por sua energia".
E, para o rapaz, que me deixou
usar a tomada, dou uma nota de
20 bolivianos: "Isto é por sua
solidariedade".
Depois de 20 horas no que já
foi conhecido como "trem da
morte", desembarcamos em
Puerto Quijarro. Na imigração,
René Monzon mostra seu documento boliviano, diz que vai
visitar parentes em São Paulo e
passa. Cleto e o filho mostram
seus documentos de residentes
argentinos (já trabalharam lá),
e passam. Eu também passo.
De Corumbá a São Paulo, são
mais 22 horas de ônibus.
1º/12 - EM SP
Chego ao terminal da Barra
Funda (zona oeste) e, conforme as instruções, chamo Dario
(nome fictício), que logo aparece. É um jovem boliviano, com
bermuda e camiseta novas da
Nike, provavelmente feitas por
ele mesmo.
Estranha minha aparência,
que não é a de um boliviano.
Pede a carteira de identidade
boliviana. Digo que não tenho.
Fico com medo de mostrar minha identidade e não falo meu
nome completo. Dario acha esquisito. Anota todos os meus
contatos da Bolívia.
Vamos para a rua Coimbra,
no bairro do Brás, principal reduto de imigrantes andinos, de
onde ele liga para checar minhas informações. Ele me leva
para o restaurante de Jorge
Heruvia, boliviano, fundador
da feira Cantuta, no Pari.
Chega a mulher de Dario, boliviana, dirigindo um utilitário.
Acompanham-na o filho brasileiro chamado Ronaldo e nove
conterrâneos, seus empregados. Todos usam roupas novas
e modernas. É sábado. Eles almoçam no restaurante para comemorar a entrega de um trabalho. Esperam até que cada
um tenha um prato fundo
cheio de carne de porco, milho
e batata e um copo de Coca-Cola, para começar a comer -com
as mãos. Depois do almoço, cada um ganha um copo de cerveja boliviana Paceña.
A mulher de Dario me faz
muitas perguntas e liga para o
Instituto Berlin, que confirma
minha matrícula. Vamos para a
oficina onde moram e trabalham os 12 que almoçaram juntos. É um pequeno sobrado, onde se espremem dez máquinas
e altas pilhas de tecidos para
costurar, além de beliches.
"Você vai trabalhar aqui e vai
dividir o dormitório com eles",
ela me diz. Logo, vamos a um
templo evangélico na avenida
Celso Garcia (zona leste). Embora o catolicismo seja dominante na Bolívia, as várias denominações evangélicas crescem nas áreas mais pobres. A
dona da confecção quer a opinião do pastor boliviano sobre
minha contratação.
O pastor lembra histórias de
peruanos, paraguaios e brasileiros que roubam os bolivianos. Levam dinheiro, levam
máquinas. Depois, como Pôncio Pilatos, lava as mãos: "La
decisión es de ustedes". Fui jogado no olho da Celso Garcia.
Durmo na Barra Funda. Pela
TV, assisto à queda do Corinthians para a segunda divisão
do Campeonato Brasileiro. No
final da tarde, volto para o terminal rodoviário e ligo para o
senhor Gualter, com quem fiz
contato telefônico quando estava em La Paz. Ele aparece
meia hora depois. Boliviano, 45
anos, roupas simples. Dessa
vez, mostro o documento de
brasileiro, falo de minha infância e juventude rurais, mostro
as mãos calejadas (logicamente, não digo que é por causa do
guidão da motocicleta XL 87).
2/12 - NO TRABALHO
Gualter faz algumas perguntas e me leva para sua oficina,
com nove máquinas de costura.
No mesmo local, mora com a
mulher, dois filhos e quatros
outros bolivianos.
Firmamos um contrato verbal pelo qual trabalharei durante três meses, ganhando cama, comida e nenhum salário.
Enquanto isso, aprenderei a
costurar. No fim desse prazo,
faremos novo acerto.
Durmo em uma cama quase
limpa e, às 7h, começo. Pratico
com retalhos durante toda a
manhã e, à tarde, já costuro forro de saia. Minha maior dificuldade é distinguir a frente do
verso do tecido. Paro de perguntar quando concluo que,
afinal, não vai mudar a vida de
ninguém algumas mulheres
andarem com o forro das saias
do lado do avesso.
No meio da tarde, o coreano
manda 165 cortes de vestidos,
para serem costurados -R$ 2
cada um. Pergunto por que tão
pouco. Gualter responde que,
se não pegar o serviço, haverá
quem o pegue por R$ 1,50.
O coreano não dá mais as linhas de costura. Antigamente
dava. Parece que ninguém naquela oficina sabe como se chama o coreano, onde ele fica, como ele é, mas todos sabem que,
no caso de uma peça se perder,
o coreano cobrará o preço de
venda. Isto é, será descontado o
trabalho de 20 para pagar uma.
Daí para a frente todos os
dias trabalhamos nesses vestidos das 7h à meia-noite. Com
intervalos às 8h para o desjejum, ao meio-dia para almoço,
às 18h, para o chá, e às 22h, para
o jantar.
Com o rádio o tempo todo
sintonizado na estação pirata
Meteoro FM, escutamos as últimas notícias da Bolívia. O locutor convoca os bolivianos para encontro na praça da Sé no
Dia do Imigrante. "Meteoro
FM, cien por ciento usted. Você, que trabalha de sol a sol nas
oficinas de costura, sabia que
na década de 80 o governo boliviano fez acordo com o governo
chinês para que os chineses desenvolvessem a agricultura do
nosso país?", fala o locutor, que
trata indiferentemente chineses e coreanos. Expressa-se em
um espanhol límpido, perfeitamente audível, apesar dos motores barulhentos das máquinas de mais de 30 anos.
"Em vez de trabalhar a terra,
os chineses foram para a cidade
explorar a tecelagem e a costura. Acabaram expulsos e foram
para a Argentina e para o Brasil,
levando junto os costureiros
bolivianos, que depois trouxeram outros, que trouxeram outros, que trouxeram outros e
até hoje continuam trazendo."
"Essa forma de trabalhar que
nossos patrícios conhecem é
dos chineses. Os chineses fazem os bolivianos trabalharem
como eles, mas não precisa ser
sempre assim. Nós temos o direito de sonhar com dias melhores. Você que passa anos e
anos costurando e nunca comprou seu carro, sua casa, nós
não podemos passar a vida sendo tratados como estrangeiros.
Todos somos seres humanos.
Você que está ilegal, vamos nos
encontrar todos no Dia do Imigrante e fazer uma marcha por
anistia e direitos humanos."
Gualter me conta que chegou
ao Brasil em 1982 e trabalhou
para bolivianos durante um
ano e quatro meses sem receber salário. Depois passou a
trabalhar com outro, que até
hoje lhe deve. Sempre em jornadas das 7h à meia-noite, só
folgando aos domingos. Tudo
que conseguiu foi comprar as
máquinas usadas com as quais
oferece trabalho a recém-chegados, como eu. Nunca conseguiu comprar um carro ou uma
casa. Seu sonho é parar de pagar os R$ 600 de aluguel.
A jornada diária de 17 horas
sentado, com os pés nos pedais,
rendeu-lhe uma úlcera varicosa na perna esquerda. Atrapalha a produtividade e impede-o
de jogar futebol aos domingos.
Na sexta-feira, enquanto tomamos o chá de sultana (casca
de café) com pão às 18h, com os
motores das máquinas desligados para economizar energia,
ouvimos a porta do estabelecimento de brasileiros se fechando. Gualter diz:
"Fecham às seis. Descansam
às seis e só voltam na segunda-feira, às oito. Aqui, todos descansam às seis". Não há inveja
ou desdém. É como se falasse
de uma espécie diferente. Como se dissesse: "As aves se recolhem ao entardecer".
Pergunto o que faria se pudesse descansar todos os dias às
18h. Ele responde: "Não dá. O
dinheiro não alcança".
Insisto: mas e se desse?
"Descansaria, assistiria ao televisor, dormiria", responde. "É
muito difícil ganhar dinheiro
com costura. É muito fiscal pedindo um cafezinho."
Trabalho todos os dias, caprichando para evitar que um erro
grave coloque a perder a produção de mais de 20 peças.
8/12 - A FUGA
No sexto dia de trabalho, ainda não temos um vestido de R$
2 completamente pronto. Falta
colocar golas e mangas em todos eles, o que acontecerá em
mais dois dias de trabalho. Então consigo permissão para ir à
farmácia comprar um remédio.
Fujo para nunca mais voltar.
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