São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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ANÁLISE

Estratégias discursivas do poder monetário

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

Quando se sabe que o presidente norte-americano acaba de apresentar à nação um orçamento que omite a despesa com a guerra do Afeganistão, assim evitando que acusasse déficit, logo se vê que, em questão de governantes e dos economistas que trazem pela coleira (ou vice-versa), tudo é possível.
A ata da última reunião do Copom (Comitê de Política Monetária), órgão do Banco Central [que inicia hoje nova reunião], faz o leitor cair de costas. São páginas e páginas de impenetrável economês, visando a que o leitor não perceba que a inflação aumentou e deve continuar aumentando: conclusão que se encontra embutida na própria ata.
Os malabarismos de linguagem são admiráveis e começam logo, quando o leitor, no primeiro parágrafo, desconfia que deve haver alguma diferença entre "significativamente inferior" e "expressivamente inferior". Lê de novo, vai conferir, e há. No primeiro caso, o resultado mostra-se favorável quando comparado às estimativas dos analistas. Quando não se trata de vagas estimativas de vagos analistas, e a comparação se faz com parâmetro firme, emitido por uma fonte oficial, e o resultado é negativo, é o segundo caso.
E depois há o IPCA, ou Índice de Preços ao Consumidor Amplo: quem é amplo? O índice? O consumidor? Ou ambos?. Para calcular o IPCA, saiba o desavisado leitor que vigoram diferentes preços, os quais exercem pressões sobre os índices, constituindo "contribuições individuais" de três tipos: preços livres, preços monitorados ou administrados (que podem ou não ser a mesma coisa) e oligopolizados.
Quanto a médias, o leitor pensa que a média de "dois mais quatro" é igual a três, como aprendeu na escola primária. Era: não é mais. Depende. Pois há "médias aparadas" e médias submetidas a "procedimento de suavização". O que será isso, meu Deus? Ou seja, se as médias reagem mal quando aparadas (o que já deve doer), serão amarradas esperneando e obrigadas a sabe-se lá o quê? Ignomínias, tormentos? Serão drogadas? Aplicam-lhes o soro da verdade? Passam pelo detector de mentiras? Ou apenas levam um cascudo?
Mas isso ainda não é nada. Logo em seguida, o leitor fica sabendo que as quebrantadas médias podem renegar suas convicções e se tornar "médias aparadas simétricas". Aí, sim: depois de tudo por que passaram, estarão perfeitamente enquadradas.
Para justificar altas de preços, a ata vai fazendo abundante uso de "fatores sazonais" e da famigerada "entressafra" e é só mais para o fim que o leitor ficará sabendo que a alta é geral. Que alívio! Pelo menos o motivo não reside em esquisitices desse jaez.
Mas novo susto o aguarda, no parágrafo "10 d", quando a ata fala de um "modelo de determinação endógena de preços administrados". Nossa confiança é renovada, todavia, quando nos declaram peremptoriamente que essa é a base para a projeção dos reajustes. Depois dos "termos dessazonalizados" do parágrafo 16, descobrimos, enfim, no parágrafo 31 -e com que alegria, pois já esperávamos o pior- que a inflação aumentou, o que era tudo que a ata queria ao mesmo tempo camuflar e defender. Se era só isso, não carecia de ter submetido o leitor a tanta agonia. Mesmo deixando para trás o parágrafo "10 e", onde colidem "spread" e "swap", taxa Selic e modelo VAR.
Das três, uma. Ou bem eles não sabem do que estão falando. Ou bem não querem que o leitor saiba que eles não sabem do que estão falando. Ou bem sabem do que estão falando, mas não querem que o leitor saiba. Donde a tergiversação sem fim, intimidando o leitor com um labirinto de cifras e siglas, para decretar que só a onipotência dos economistas -esses titãs- se interpõe entre nós e o caos.


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