São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 2006

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LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Um novo metabolismo

No novo metabolismo da economia brasileira, a sobra de dólar valorizou o câmbio e criou dinâmica de desinflação

A ECONOMIA de um país é um organismo vivo como outros que vivem em nosso universo.
E por isso tem um metabolismo próprio e que explica seu comportamento ao longo do tempo. Esse metabolismo é função também do ambiente externo a que está submetido e de várias forças não-econômicas que agem sobre seu funcionamento no dia-a-dia. Tenho estudado as mudanças no metabolismo da economia brasileira a partir do incrível fortalecimento de nossas relações econômicas e financeiras com o mundo exterior.
Esse fenômeno, que hoje se apresenta aos olhos do analista cuidadoso e sem preconceitos de uma forma muito clara, começou na passagem de 2003 para 2004. E, como já escrevi várias vezes, teve sua origem na alteração do equilíbrio entre oferta e procura criada pela economia chinesa nos mercados mundiais de alguns produtos primários. Com isso, os preços de nossos principais produtos de exportação tiveram um aumento extraordinário, gerando um vigoroso crescimento no saldo de nosso comércio exterior e mudando o metabolismo de parte importante de nossa economia.
Há poucos meses, comecei a aprofundar minhas reflexões sobre as diferenças entre o metabolismo de uma economia aberta com sobra de dólares e o de uma economia aberta com escassez de moedas internacionais. Essa última situação representa bem a economia brasileira no período 1996 a 2002, enquanto a primeira é uma boa descrição para o que vem ocorrendo nos últimos dois anos.
Uma primeira diferença importante aparece na dinâmica da inflação. A sobra de dólares em nosso mercado cambial levou a uma valorização expressiva de nossa moeda e criou uma dinâmica de desinflação na economia. A inflação desabou, e, pela primeira vez desde a criação do sistema de metas, teremos em 2006 um IPCA bem abaixo do centro da meta. Está havendo uma mudança no poder de fixação de preços por parte das empresas brasileiras em razão do aumento das importações proporcionado pela solidez das contas externas. Felizmente, o Banco Central, com um atraso de alguns meses, reconheceu esse fato na última ata do Copom.
Esse metabolismo novo vem provocando muitas mudanças importantes em nossa economia, trazendo novos desafios para o Brasil. Mas isso tem sido pouco reconhecido pela maioria dos analistas, que ainda raciocinam com o metabolismo antigo, o que tem restringido muito a percepção da sociedade para essas transformações. Por isso minha insistência nestes nossos encontros semanais em tratar desse assunto, que tem relação não apenas com a dinâmica da inflação mas também com o baixo crescimento, que parece ser a vocação da economia brasileira.
O custo de muitos anos de uma fragilidade externa destrutiva foi o fechamento de nossa economia e a criação de uma lógica de sobrevivência macroeconômica. Mesmo o sucesso do Plano Real não conseguiu reverter essa situação nos anos FHC. A experiência desastrosa do regime de câmbio fixo, combinada com um mundo em crise financeira e sem a dinâmica chinesa dos últimos anos, levou o país a criar um ambiente de negócios no sentido contrário ao que prevaleceu nas outras economias de mercado. O aumento continuado dos gastos do governo e de sua irmã gêmea -a carga tributária- marcou com tintas fortes, para pior, as regras de funcionamento da economia brasileira. Tomemos o exemplo de nosso sistema tributário. Ele é talvez o mais anti-racionalidade de mercado que existe entre os países emergentes. Mas foi construído por gente competente e é operado por uma burocracia, a Receita Federal, também bastante eficiente em seu objetivo único de aumentar a arrecadação.
Por muito tempo esse descompasso gritante entre a qualidade de nossa economia de mercado e a de nossos concorrentes ficou mascarado pela nossa incapacidade de importar. Operamos até 2004 como se tivéssemos, na prática, uma economia fechada e sem a competição externa.
Por isso, o metabolismo de nosso sistema econômico foi se adaptando a essa restrição. Mas agora esse arranjo institucional é um dos fatores mais agressivos ao metabolismo de uma economia aberta e com enorme capacidade de importar, como é o Brasil atualmente. Esse choque entre um sistema irracional do ponto de vista de uma economia aberta e um mundo competitivo e com regras totalmente diferentes das nossas começa a revelar, via crescimento medíocre, a impossibilidade de ser mantido. Por isso não existe outro caminho para tirar nossa sociedade da mediocridade em que vivemos senão o de enfrentar de frente essas limitações. O resto são bravatas.


LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS, 63, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
lcmb2@terra.com.br


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