São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Sonhos, ilusões de romance

Defender a União das Américas, do Alasca à Terra do Fogo, é cultivar quimeras e utopias desvairadas

FIQUEI RECONFORTADO. Um importante empresário brasileiro publicou nesta Folha, há poucos dias, um artigo em defesa da União das Américas. Verifiquei, satisfeito, que, nos meios empresariais, também se vendem sonhos e ilusões de romance, como na canção de Lulu Santos. À primeira vista, temos por aqui apenas capitalistas em busca permanente de lucros, subsídios, isenções tributárias e privatizações baratas. Mas não. Eles também cultivam quimeras e até utopias desvairadas.
A União das Américas, do Alasca à Terra do Fogo, é uma dessas utopias. Não vou citar o empresário nominalmente. Poderia fazê-lo, até porque o leitor provavelmente sabe de quem se trata. Mas é que os argumentos de que ele se valeu não são nada originais e refletem uma atitude ainda bastante comum no Brasil. Individualizar a crítica seria dar à polêmica um caráter por demais restrito.
Na verdade, a tese da União das Américas é antiga e já um tanto bolorenta. Mas não está morta. A referida União se faria evidentemente sob a liderança dos EUA. Entretanto, o "grande líder", comenta o empresário utopista, deveria "dar mais atenção aos vizinhos do seu próprio quintal" (sic).
A defesa do projeto pan-americano se apóia quase sempre em alguns argumentos básicos, insistentemente repetidos. Primeiro argumento: o mundo estaria se organizando em grandes blocos regionais. "É óbvio", diz o nosso utopista, "que o mundo caminha para formar três blocos distintos: Europa, Ásia e América."
Segundo argumento: um bloco latino-americano, ou mesmo apenas sul-americano, não seria viável. Não teríamos força política e econômica, competência ou coesão para tal. Nada de agitação nas imediações do quintal do grande líder! Faz parte desse segundo argumento supervalorizar e exagerar os conflitos de interesse entre países sul-americanos ou latino-americanos.
Terceiro argumento: não haveria motivo para temer a União das Américas, pois a União Européia seria um exemplo vivo de que a integração regional pode ter resultados altamente benéficos para os países envolvidos, mesmo os mais atrasados economicamente.
Todos esses argumentos são frágeis. Vamos por partes, como faria Jack, o Estripador. Primeiramente, não é nada óbvio que o mundo esteja se organizando em blocos regionais. Não há bloco asiático em formação. As grandes nações da Ásia não superaram as suas rivalidades históricas, o que impediu até agora o lançamento de um processo de integração regional ambicioso, remotamente comparável ao europeu. China e Japão não se entendem. A Índia desconfia da China e vice-versa. Índia e Paquistão estiveram, nas décadas recentes, várias vezes em guerra ou à beira disso.
Na verdade, o bloco europeu é um caso único, resultado de uma experiência histórica singular. Duas guerras mundiais, que foram, em grande parte, guerras civis européias e que geraram níveis nunca antes vistos de violência, destruição e mortes, levaram a que as grandes potências do continente, começando pela França e a Alemanha, optassem finalmente por uma aliança estratégica. Essa aliança vem sendo pacientemente construída, ao longo de mais de 50 anos, não sem tropeços, dificuldades e resistências. Trata-se de um processo de integração profundo, relativamente equilibrado, que permite, por exemplo, a livre circulação de trabalhadores e leva em conta a necessidade de apoiar sistematicamente o desenvolvimento dos países mais atrasados.
Nada disso está sendo cogitado nas Américas. O que Washington propõe para a integração hemisférica -a Alca ou tratados bilaterais no formato Alca- nada tem a ver com o modelo da União Européia.
Mal comparando, o que existe na Europa é um casamento. E o que os EUA propõem aos latino-americanos é um "affair", um caso vagabundérrimo, ainda que de longa duração. O México, por exemplo, está há anos tentando legalizar as "relações carnais" que mantém com o grande vizinho do Norte. Sem nenhum sucesso, claro.
Resumo do folhetim: se não quisermos cair em desgraça, se quisermos preservar a nossa independência como nações, o que nos cabe fazer é seguir o exemplo europeu no âmbito da América do Sul (o México e a América Central parecem ter sucumbido irremediavelmente ao controle dos EUA). Isso significa disposição, paciência e energia para construir, ao longo das próximas décadas, um bloco econômico e político, que tenha o Mercosul como ponto de partida, e que inclua, se não todo, pelo menos a maior parte do continente sul-americano.


PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 51, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005).
pnbjr@attglobal.net


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