São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 1998.



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ENTREVISTA
Para o ex-diretor do BC, a falta de uma solução trará mais desaceleração econômica e mais quebradeira
Reação à crise na Ásia é tímida, diz Fraga

COSETTE ALVES
Especial para a Folha

Armínio Fraga, 41, está numa posição privilegiada para falar sobre a crise atual da Ásia, suas implicações no Brasil, deflação e outros temas que preocupam não só os mercados financeiros mundiais, mas também os governos e a população informada.
Segundo Fraga, a crise é muito grave e, dependendo de seu desenvolvimento, pode interferir na economia internacional, causando dificuldades imprevisíveis e custos sociais.
Armínio Fraga nasceu no Rio de Janeiro, estudou no Colégio Santo Inácio e graduou-se em Economia na PUC-RJ. É doutor pela Universidade de Princeton, uma das mais prestigiosas universidades norte-americanas.
Fraga foi diretor da Área Externa do Banco Central quando Marcílio Marques Moreira era ministro da Fazenda e Francisco Gros presidente do BC. Ao sair do governo, foi trabalhar com George Soros, megainvestidor internacional, apontado como o autor de um ataque especulativo bem-sucedido contra a libra inglesa e autor de um livro que critica o sistema financeiro internacional.
Há cinco anos Armínio Fraga é responsável por um dos cinco fundos do Soros Funds Management -o fundo Quantum de mercados emergentes e mercados em geral.
Fraga tem a visão de todos os lados do problema. Sócio de um dos investidores mais proeminentes das finanças internacionais, tem também a experiência do BC e a formação em universidades brasileiras e norte-americanas.
Armínio Fraga deu essa entrevista para a Folha no seu escritório em Nova York.
Folha - O sr. acha que a crise na Ásia pode se agravar?
Fraga
- A crise é grave. Estamos vendo uma tentativa de solução, com o apoio do FMI, mas essa tentativa não tem tido uma reação positiva dos próprios países. Se os esforços para resolvê-la não forem bem-sucedidos, vamos ter mais desaceleração econômica e mais quebradeira. Isso seria ruim para o mundo e para o Brasil também.
Folha - As consequências são imprevisíveis?
Fraga
- As consequências podem ser previsíveis. O evento é que não é previsível. Hoje, é difícil prever como isso vai evoluir. Pode até evoluir satisfatoriamente, mas a reação dos diversos países, nas suas políticas econômicas, foi modesta.
Folha - O que desencadeou a crise na Ásia? Os países do Sudeste Asiático não eram o modelo bem-sucedido de desenvolvimento econômico?
Fraga
- Tomou-se muito dinheiro emprestado e as empresas tinham muito mais dívidas do que capital. A crise na Ásia foi um produto de economias que tomaram muito dinheiro no exterior de curto prazo. A percepção inicial era que isso era bom, porque esses países estavam investindo. Mas aconteceu que, por razões diferentes de país para país, esses investimentos tiveram problemas. Isso gerou uma crise de confiança em relação às empresas que tinham tomado esse dinheiro todo, que, por sua vez, gerou uma crise de confiança nos bancos que emprestaram o dinheiro para as empresas. Formou-se uma cadeia e, quando mudou a percepção, o dinheiro secou! Foi uma crise financeira em economias que chegaram a uma alavancagem extraordinária de suas empresas.
Folha - Por que é que se chega a esse ponto?
Fraga
- Na Ásia, eles foram vítimas de seu próprio sucesso! Acabaram se inebriando, se embebedando com o sucesso. É uma história bastante comum: tomaram um pileque de crédito e agora estão de ressaca.
Isso aconteceu porque esses países asiáticos também representaram um modelo de economia bem-sucedida. Muita poupança, muito trabalho, muito investimento, muita educação. De fato, isso tudo existe lá e nada impede que mais adiante eles possam voltar a crescer, não 8% ou 10% ao ano, mas 5% ou 6% é possível que sim.
Folha - Os bancos que emprestaram tanto dinheiro para o Sudeste Asiático também estavam inebriados com o sucesso?
Fraga
- Isso variou de país a país. O que aconteceu no caso da Coréia foram bancos que têm tradição de trabalhar com orientação e garantia implícita do governo. Foi um processo que evoluiu e que passou do ponto.
Na Tailândia, foi o setor imobiliário que, como um todo, acabou entrando numa situação de excesso de oferta muito grave.
Folha - E na Indonésia?
Fraga
- Na Indonésia foi mais complicado. Estruturalmente, eles não tinham problemas tão sérios, mas, politicamente, sim. Aparentemente, o círculo do presidente influiu para que ele não implementasse um programa mais agressivo de estruturação da economia. Isso gerou uma crise de confiança que se agravou com a percepção de que o próprio presidente estaria fraco, com problemas de saúde. Gerou-se uma bola de neve, com fuga de capital.
A falta de credibilidade política e econômica no caso da Indonésia foi muito clara. Talvez tenha sido a maior surpresa, por ser o país que parecia, no início, o modelo do FMI. Muita gente tinha essa expectativa. Eu mesmo me surpreendi com a Indonésia, que era, de todos os países de lá, o que me parecia ser o melhor candidato a superar essa crise, mas hoje é o que está em pior situação.


"Na Ásia, eles tomaram um pileque de

crédito e agora
estão de
ressaca" Folha - O que o sr. pode nos falar sobre a China?
Fraga
- A China é um grande ponto de interrogação, um certo mistério, pois agora é que começa a abrir um pouco mais os seus dados. A percepção é de que esse crescimento muito rápido dos últimos anos veio acompanhado de algumas fragilidades, principalmente no setor estatal, que supostamente está endividado e não é muito eficiente.
Os dados que eu tenho mostram que o tamanho do buraco estabilizou há uns três anos, mas é relativamente grande. Ninguém sabe muito bem se é 20% ou 30% do PIB. Por outro lado, o governo chinês tem pouca dívida pública. Eles poupam muito. O que sobra para mim como dúvida é qual será o impacto sobre as exportações da China essas desvalorizações nos países vizinhos.
Folha - Qual seria a repercussão disso?
Fraga
- Isso poderia ter repercussão no crescimento da China, com a necessidade de um ajuste mais adiante. Algum impacto vai existir, embora ainda seja difícil quantificá-lo.
Folha - E qual o impacto das desvalorizações das moedas dos tigres asiáticos nas economias norte-americana e brasileira?
Fraga
- O impacto é limitado. Os tigres, todos juntos, são menores que o Brasil. Representam menos do que 5% da economia mundial.
Eu acredito que a desvalorização em termos reais não vai ser tão grande quanto ela é hoje em termos nominais. Ou seja, vai ter alguma inflação, que vai comer um pouco dessa desvalorização, ou algumas dessas taxas de câmbio vão voltar um pouco. Ou haverá uma combinação das duas coisas.
Há um impacto secundário na economia mundial. Aí, é preciso tomar um certo cuidado. A economia americana vinha crescendo um pouquinho rápido demais. Pode ser que essa crise desacelere a economia e a trajetória de crescimento fique num nível mais sustentável. Para os EUA, pode ser que seja até um mecanismo que o Alan (Greenspan, presidente do Fed, o Banco Central americano) batizou de "soft-landing", há dois anos. Uma pequena desaceleração.
Para a economia brasileira, o efeito é mais indireto no que diz respeito a crescimento e ao câmbio. Onde o efeito é mais direto é no fluxo de capital. Na medida em que a crise melhore ou piore, o Brasil vai sentir os efeitos. Mas, a coisa não acabou ainda.
Folha - O sr. acha que é o momento de investir na Coréia?
Fraga
- Não costumo dar sugestões de investimento. O que eu posso dizer é que, num momento de crise, surgem oportunidades. E é óbvio que na Ásia os preços caíram muito. Portanto, em algum momento, vai ser interessante comprar... Mas a crise é muito grave. É importante destacar que o risco ainda é muito alto e um pouco de cautela não faz mal a ninguém.
Folha - Dá para o sr. dar uma idéia das taxas de retorno dos mercados emergentes?
Fraga
- É difícil calcular. Essas contas não são muito fáceis. Os mercados emergentes, na média, segundo o índice do I.F.C., caíram 13% a 14% em 1997. Nos últimos cinco anos, praticamente não subiram. O Brasil foi uma exceção. Eles têm tido, portanto, uma performance bem inferior à dos mercados maduros. O que não quer dizer que daqui para frente isso não possa se reverter. É uma possibilidade, mas hoje é difícil fixar esse ponto de inflexão.
Folha - Algum saldo positivo para o Brasil, resultante da crise da Ásia?
Fraga
- A crise da Ásia detonou o processo de reformas, que estava parado. Em virtude dessa reação positiva, o Brasil e a América Latina passaram a ser vistos como uma região que leva mais a sério as condições necessárias à inserção na globalização.
Folha - Por que o sr. acha que a crise asiática afetou tanto o Brasil?
Fraga
- O Brasil foi mecanicamente colocado numa lista de países que tinham déficit em conta corrente e déficit fiscal -e isso não era de todo equivocado.
Folha - O sr. acha que o Brasil está no núcleo da crise ou nas bordas?
Fraga
- Nas bordas. A reação do governo brasileiro no último trimestre foi muito bem-recebida. Diferenciou o Brasil de muitos dos países asiáticos que continuam, de certa forma, enterrando a cabeça na areia, e tirou o país do núcleo da crise. Mas o assunto Brasil ainda não está resolvido, pois ainda depende de capital externo. E é razoável que dependa. Portanto, não pode bobear.
Folha - Se o sr. fosse uma autoridade monetária hoje, no Brasil, faria alguma coisa diferente do que está sendo feito?
Fraga
- Não.
Folha - Seria bom ou ruim para nossa economia uma desvalorização do real?
Fraga
- Um alcoólatra monetário reformado como o Brasil não pode se dar ao luxo de tomar um golinho. Acho que a desvalorização seria isso. O Brasil precisa consolidar o processo. E nós temos até alguma flexibilidade, o que é bom.
A desvalorização gradual está ocorrendo e o resto tem que ficar por conta do custo Brasil. O México desvalorizou quase 100% em 1995. Hoje, levando em conta a inflação que veio depois, sobraram 10%. O Brasil pode chegar aos mesmos 10% sem correr o risco de voltar ao alcoolismo inflacionário.


"A crise detonou no Brasil o processo de reformas, que

estava parado" Folha - Quais as possibilidades da entrada de capital externo direto para o país em 1998?
Fraga
- Você vai ver a continuidade do que foi claramente uma substituição. O Brasil deixou de tomar dinheiro a curto prazo e passou a atrair capitais de longo prazo, seja para investimento direto, seja para privatização. Eu vejo essa tendência mantida, talvez até com aumento da proporção do capital de longo prazo.
Folha - O sr. acha que o Brasil poderia ter ficado mais protegido da crise se o país tivesse o dólar mais caro, tarifas de importação mais altas e déficits em conta corrente menores?
Fraga
- A resposta é sim. Mas a pergunta não pode ser feita sem se pensar na trajetória. Num mundo sem política, eu não tenho dúvida de que muito do que se fez agora durante a crise poderia ter sido feito antes. Mas a realidade é que se vive em regime democrático, e sempre existem restrições às mudanças. Foi feito o que deu para fazer. Se tivesse sido feito antes, teria sido melhor. Mas é até injusto criticar muito o governo. Um pouquinho a gente pode, é correto.
Folha - O sr. acredita que o aumento das taxas de juros, juntamente com o pacote que foi feito, as privatizações e a aprovação das reformas foram suficientes para evitar uma desvalorização do real?
Fraga
- Acho que é suficiente.
Folha - O sr. acha que vai continuar sendo suficiente?
Fraga
- Até o momento pode continuar a ser. Se o governo continuar nessa trajetória de reformas, com a da Previdência, a administrativa, depois a segunda reforma da Previdência, cujo projeto está sendo coordenado pelo André Lara Resende, eu acho que pode mudar a cara do país, reduzir o risco do Brasil e melhorar a percepção do investidor. Pode até permitir uma queda gradual dos juros, que hoje é razoável que ocorra.
Folha - O real sofreu um ataque especulativo ou a crise que passamos foi causada pela grande alavancagem de alguns bancos em papéis da dívida brasileira no exterior?
Fraga
- A expressão ataque é muito usada na literatura acadêmica desde o final dos anos 70. É uma expressão um pouco perigosa, porque, mesmo nos casos em que houve uma crise, é difícil dizer se ela foi fruto de um ataque coordenado de um grupo de pessoas. Nós estamos nesse negócio, e grande parte dele engloba a área de câmbio. Participamos de vários episódios, em alguns casos ganhando, em outros perdendo. É importante destacar isso: não há essa figura do ataque. O que há é um pânico, é um clímax de expectativas, no qual, em dado momento, se cristaliza a percepção de que uma determinada situação não é sustentável. Então, acontece a corrida.
É mais correto dizer que há uma fuga de uma determinada moeda... Aquela moeda passa a ser indesejável. Essa fuga, muitas vezes, começa com os próprios residentes do país.
Folha - Qual seria o fator-chave desse fenômeno?
Fraga
- Em geral, é a percepção de que uma determinada situação, até então tida como viável e estável, deixa de ser. É difícil assinalar o momento em que isso ocorre. É difícil também prever. Mas, depois que ocorre, fica claro o que era. É uma necessidade externa de financiamento muito grande. Normalmente, isso ocorre quando o país tem não só déficit em conta corrente, mas apresenta o outro lado da medalha: a necessidade de tomar dinheiro e muita dívida de curto prazo. É muito comum encontrar dentro do problema a necessidade de dinheiro de curto prazo.
Folha - Consta que o sr. George Soros teve sempre papel principal nos ataques especulativos. O sr. pode dizer algo sobre isso?
Fraga
- Parte da nossa atividade passa por analisar essas situações e tentar prever quando o problema vai acontecer. Mas isso todo mundo faz. Por exemplo, se você está no Brasil ou na Coréia e está vendo que a situação está ficando ruim, e você tem que importar uma máquina, importa um pouco mais cedo, enquanto está barato. Se você é um exportador na Tailândia, vendo que a situação está ficando feia, faltando dólar, provavelmente vai segurar seus dólares lá fora. Todos esses jogadores têm um comportamento igual ao nosso, com a única diferença de que nós só fazemos isso, enquanto a grande maioria está fazendo isso no contexto de seus negócios ou da sua vida em geral... É o chofer de táxi que diz: olha, se você me pagar em dólar, não tem problema.
Folha - Qual a sua opinião sobre George Soros?
Fraga
- O George é um pessoa fantástica. Possui uma visão de 360 graus. Uma de suas qualidades é manter o raciocínio aberto sem viés em momentos de crise. Não se emociona. Consegue, mesmo na crise, manter neutralidade na análise. Atribuo a essa característica dele boa parte do sucesso que tem tido ao longo dos anos.
Folha - Que ensinamento o senhor acha que o setor financeiro no Brasil e no mundo pode tirar dessa crise?
Fraga
- Nós estamos falando de uma crise dupla, porque lá na Ásia teve ao mesmo tempo uma crise de balança de pagamentos e uma crise financeira. Essas crises muitas vezes ocorrem juntas. As lições são clássicas e estão nos livros. Por alguma razão o mundo se esquece dessas coisas periodicamente. As lições seriam duas: a primeira, é saber como estruturar e desenhar um setor financeiro que não tenha tantos incentivos perversos, que gerem esse tipo de comportamento, que acaba tendo custos sociais elevados.



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