São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2008

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ARTIGO

Jamais teremos um modelo perfeito de risco

Ex-presidente do Fed (BC dos EUA) diz que é preciso reavaliar modelos diante da crise financeira sem ameaçar a flexibilidade do mercado e livre competição

ALAN GREENSPAN
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

A ATUAL crise financeira nos Estados Unidos provavelmente será vista em retrospecto como a mais dolorosa depois da Segunda Guerra Mundial (1939-45). Ela terminará quando os preços das casas se estabilizarem, e com eles o valor de capital dos imóveis que serve de lastro aos títulos hipotecários que estão em crise.
A estabilização dos preços das casas restaurará uma clareza muito necessária ao mercado, porque os prejuízos terão se concretizado, em lugar de existirem como perspectiva. Uma fonte de contágio grave será eliminada. As instituições financeiras se recapitalizarão ou fecharão as portas. A confiança na solvência das empresas restantes será gradualmente restaurada, e as emissões de títulos e concessões de empréstimos lentamente voltarão ao normal. Ainda que o estoque de residências vagas pertencentes a construtoras e investidores tenha atingido seu pico recentemente, até que esse estoque comece a ser liquidado de forma consistente, o nível em que os preços se estabilizarão continuará a ser problemático.
A bolha da habitação dos Estados Unidos atingiu seu pico no começo de 2006 e foi seguida por uma abrupta e rápida retirada ao longo dos dois últimos anos. Desde a metade de 2006, centenas de milhares de proprietários de imóveis, alguns dos quais impelidos pela execução de hipotecas, trocaram suas casas próprias por moradias de aluguel, o que gerou um excedente de cerca de 600 mil imóveis residenciais vagos, em larga medida controlados por investidores, e estas unidades continuam à venda. Os construtores apanhados pela rápida contração de mercado elevaram esse total involuntariamente em cerca de 200 mil unidades cuja construção foi concluída depois que a crise começou, reforçando o segmento de "casas vazias à venda".
Os preços dos imóveis residenciais vêm recuando rapidamente, ao peso desse estoque excedente. A construção de imóveis residenciais se reduziu em 60% do começo de 2006 para cá, mas apenas recentemente caiu abaixo da demanda por moradia. De fato, esse nível muito reduzido de novas unidades ainda por chegar ao mercado, somado ao aumento de cerca de 1 milhão de unidades no número de novos domicílios que devem ser formados este ano nos Estados Unidos, bem como à demanda implícita por casas de férias e por imóveis de substituição, implicarão, combinados, um declínio de cerca de 400 mil unidades no estoque de casas vazias à venda, ao longo do ano de 2008.
O ritmo de redução do estoque provavelmente se acelerará à medida que a construção de novas unidades se reduzir ainda mais. O nível de preço das casas provavelmente se estabilizará tão logo esse ritmo de redução de estoque atinja seu ponto mais elevado, o que acontecerá bem antes da eliminação completa do estoque excedente. Mas esse momento está ainda a um número indeterminado de meses de distância.

Colapso na avaliação
A crise causará muitas baixas. Um segmento que sofrerá danos graves será o atual sistema de avaliação de riscos financeiros, que exibiu colapso de algumas de suas partes mais importantes, quando exposto a desgaste severo. As pessoas que acreditavam que as instituições de crédito agiriam, em seu próprio interesse, para defender o capital dos acionistas certamente estão chocadas, atônitas. Mas espero que uma das vítimas da crise não venha a ser a idéia de vigilância por parte do próprio mercado, e em termos mais amplos o uso da auto-regulamentação como forma de propiciar equilíbrio fundamental às finanças mundiais.
Os problemas, pelo menos nos estágios iniciais da crise foram mais pronunciados entre os bancos, cujo sistema de regulamentação é bastante elaborado já há muitos anos. É certo que os sistemas utilizados para estabelecer requisitos de capitalização bancária desenvolvidos ao longo das duas últimas décadas passarão por substancial reforma, à luz das recentes experiências. De fato, os investidores privados já estão exigindo cauções e capital mais fortes, e os especialistas reunidos sob os auspícios do Banco de Compensações Internacionais (BIS) certamente emendarão as regras do acordo regulatório Basiléia 2, recentemente assinado. Outro fator questionado, ao menos tangencialmente, são os elegantes modelos matemáticos de previsão econômica que uma vez mais se provaram incapazes de antecipar uma crise financeira ou o início de uma recessão.
Os sistemas do mercado de crédito e seus graus de endividamento e liquidez têm por raiz a confiança em que as contrapartes são solventes. Essa confiança sofreu sério abalo em 9 de agosto de 2007, quando o BNP Paribas revelou grandes prejuízos imprevistos em suas transações com títulos "subprime" (alto risco) americanos. Os sistemas de administração de risco e os modelos que os embasam supostamente deveriam nos proteger contra prejuízos superdimensionados. O que saiu errado?

O que deu errado?
O problema essencial é que os nossos modelos tanto os de risco quanto os econométricos, por mais complexos que se tenham tornado, ainda assim são simples demais para capturar a ampla gama de variáveis que definem e propelem a realidade econômica mundial.
Um modelo representa necessariamente uma abstração, com relação aos detalhes plenos do mundo real. Respeitando a antiga tradição de que diversificação representa redução de risco, os computadores trabalham com imensos volumes de dados históricos em busca de correlações negativas entre os preços dos ativos negociáveis, correlações que poderiam ajudar a isolar as carteiras de investimentos contra as oscilações mais amplas da economia. Mas quando esses preços de ativos, em lugar de compensarem os movimentos uns dos outros, despencaram em uníssono, em 9 de agosto do ano passado, surgiram prejuízos imensos em virtualmente todas as classes de ativos de risco.
A explicação mais confiável quanto ao desempenho tão medíocre de modelos estatísticos desenvolvidos segundo as mais modernas técnicas é que os dados subjacentes utilizados para estimar a estrutura dos modelos são extraídos tanto de períodos de euforia quanto de períodos de medo, ou seja, de regimes que apresentam dinâmicas diferentes em muitos aspectos importantes.
A fase de contração dos ciclos de crédito e negócios, propelida pelo medo, historicamente vem sendo muito mais curta e muito mais abrupta do que a fase de expansão, propelida por um acúmulo lento mas cumulativo de euforia. Ao longo dos últimos 50 anos, a economia norte-americana só esteve em contração um sétimo do tempo. Mas é o momento em que esses períodos se iniciam que é o objetivo dos sistemas de administração de risco. Correlações negativas entre classes de ativos, tão evidentes durante uma expansão, podem entrar em colapso quando todos os preços de ativos caem juntos, o que solapa a estratégia de melhorar o equilíbrio entre risco e recompensa por meio da diversificação.
Se pudéssemos modelar adequadamente cada fase do ciclo, em separado, e adivinhar que sinais nos indicariam que um regime está a ponto de mudar, os sistemas de administração de riscos poderiam ser muito melhorados. Um problema difícil é que boa parte do comportamento dúbio dos mercados financeiros que emerge cronicamente durante uma fase de expansão resulta não da ignorância ou de uma má avaliação dos riscos, mas da preocupação de que, ao menos que uma empresa participe da euforia em curso, ela perderá mercado de maneira irrecuperável.

Vulnerabilidade
A administração de riscos procura maximizar os níveis de retorno sobre o capital, ponderados de acordo com o risco; muitas vezes, no processo, o capital subutilizado é considerado como "desperdício". Os dias em que os bancos se orgulhavam de suas excelentes classificações de crédito e em que chegavam a dar a entender (muitas vezes com razão) que possuíam reservas financeiras secretas, o que lhes conferia uma aura de invulnerabilidade, há muito são coisa do passado.
Hoje, ou pelo menos antes do 9 de agosto de 2007, os ativos e o capital que definem uma classificação de crédito excelente, ou costumavam fazê-lo, são caros demais em termos de competitividade.
Não quero dizer que os sistemas atuais de administração de risco ou previsão econométrica não tenham, em larga medida, raízes sólidas no mundo real. A exploração dos benefícios da diversificação nos modelos de administração de riscos é inquestionavelmente sólida, e o uso de um modelo macroeconométrico elaborado gera disciplina nas previsões. Ele requer, por exemplo, que a poupança equivalha ao investimento, que a propensão marginal de consumo seja positiva e que os estoques não sejam negativos. Essas restrições, entre outras, eliminaram a maior parte das incômodas inconsistências nas projeções financeiras de meio século atrás.
Ciclos de euforia e medo
Mas esses modelos não capturam com exatidão aquilo que foi, até o momento, apenas um adendo periférico à modelagem de ciclos de negócios e financeiros: as respostas humanas inatas que resultam em oscilação entre euforia e medo, as quais se repetem de geração em geração, com poucos indícios que haja uma curva de aprendizado em ação. As bolhas nos preços dos ativos se acumulam e explodem hoje como o fazem desde o começo do século 18, quando os mercados competitivos modernos começaram a evoluir. É certo que tendemos a classificar essas respostas comportamentais como não racionais. Mas as preocupações de quem realiza previsões não deveriam se dirigir à racionalidade ou não das respostas humanas, e sim apenas ao fato de que elas sejam passíveis de observação, e sistemáticas.
Esta, para mim, é a grande "variável explanatória" ausente tanto nos modelos de administração de risco quanto dos macroeconométricos. A prática atual envolve introduzir o conceito de "vigor animal", como diria John Maynard Keynes, na forma de "fatores de adição".
Ou seja, nós alteramos arbitrariamente o resultado das equações de nossos modelos. Mas adicionar fatores é um reconhecimento implícito de que esses modelos, na forma pela qual os empregamos atualmente, padecem de uma deficiência estrutural; eles não tratam em extensão suficiente do problema da variável ausente.
Jamais seremos capazes de antecipar todas as descontinuidades nos mercados. Elas representam, necessariamente, surpresas. Os eventos antecipados são computados nos modelos. Mas se, como suspeito fortemente, os períodos de euforia são difíceis de suprimir em seu processo de acumulação, eles não entrarão em colapso até que a febre especulativa passe sem ajuda. Paradoxalmente, na medida em que a administração de risco pode obter sucesso na identificação de episódios como esse, ela se torna capaz de prolongar e ampliar o período de euforia. Mas a administração de risco jamais atingirá a perfeição. Ela terminará por fracassar, e uma realidade perturbadora será exposta, revelando uma resposta descontínua inesperada e intensa.
Na crise atual, como em crises anteriores, podemos aprender muito. E as futuras decisões econômicas serão influenciadas por essas lições. Mas não podemos esperar que seja possível antecipar os detalhes específicos de futuras crises, ao menos não de forma confiante.
Por isso se torna importante, ou mesmo crucial, que quaisquer reformas e ajustes à estrutura do mercado e da regulamentação não inibam nossas mais confiáveis e efetivas salvaguardas contra os erros econômicos cumulativos: a flexibilidade do mercado e a livre competição.


ALAN GREENSPAN foi presidente do Federal Reserve (1987-2006) e é autor de "A Era da Turbulência" (ed. Campus)


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