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ARTIGO
Jamais teremos um modelo perfeito de risco
Ex-presidente do Fed (BC dos EUA) diz que é preciso reavaliar modelos diante da crise financeira sem ameaçar a flexibilidade do mercado e livre competição
ALAN GREENSPAN
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"
A ATUAL crise financeira
nos Estados Unidos
provavelmente será
vista em retrospecto como a
mais dolorosa depois da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Ela terminará quando os preços das casas se estabilizarem, e
com eles o valor de capital dos
imóveis que serve de lastro aos
títulos hipotecários que estão
em crise.
A estabilização dos preços
das casas restaurará uma clareza muito necessária ao mercado, porque os prejuízos terão se
concretizado, em lugar de existirem como perspectiva. Uma
fonte de contágio grave será eliminada. As instituições financeiras se recapitalizarão ou fecharão as portas. A confiança
na solvência das empresas restantes será gradualmente restaurada, e as emissões de títulos e concessões de empréstimos lentamente voltarão ao
normal. Ainda que o estoque de
residências vagas pertencentes
a construtoras e investidores
tenha atingido seu pico recentemente, até que esse estoque
comece a ser liquidado de forma consistente, o nível em que
os preços se estabilizarão continuará a ser problemático.
A bolha da habitação dos Estados Unidos atingiu seu pico
no começo de 2006 e foi seguida por uma abrupta e rápida retirada ao longo dos dois últimos
anos. Desde a metade de 2006,
centenas de milhares de proprietários de imóveis, alguns
dos quais impelidos pela execução de hipotecas, trocaram suas
casas próprias por moradias de
aluguel, o que gerou um excedente de cerca de 600 mil imóveis residenciais vagos, em larga medida controlados por investidores, e estas unidades
continuam à venda. Os construtores apanhados pela rápida
contração de mercado elevaram esse total involuntariamente em cerca de 200 mil unidades cuja construção foi concluída depois que a crise começou, reforçando o segmento de
"casas vazias à venda".
Os preços dos imóveis residenciais vêm recuando rapidamente, ao peso desse estoque
excedente. A construção de
imóveis residenciais se reduziu
em 60% do começo de 2006 para cá, mas apenas recentemente caiu abaixo da demanda por
moradia. De fato, esse nível
muito reduzido de novas unidades ainda por chegar ao mercado, somado ao aumento de
cerca de 1 milhão de unidades
no número de novos domicílios
que devem ser formados este
ano nos Estados Unidos, bem
como à demanda implícita por
casas de férias e por imóveis de
substituição, implicarão, combinados, um declínio de cerca
de 400 mil unidades no estoque
de casas vazias à venda, ao longo do ano de 2008.
O ritmo de redução do estoque provavelmente se acelerará à medida que a construção
de novas unidades se reduzir
ainda mais. O nível de preço das
casas provavelmente se estabilizará tão logo esse ritmo de redução de estoque atinja seu
ponto mais elevado, o que
acontecerá bem antes da eliminação completa do estoque excedente. Mas esse momento está ainda a um número indeterminado de meses de distância.
Colapso na avaliação
A crise causará muitas baixas. Um segmento que sofrerá
danos graves será o atual sistema de avaliação de riscos financeiros, que exibiu colapso de algumas de suas partes mais importantes, quando exposto a
desgaste severo. As pessoas que
acreditavam que as instituições
de crédito agiriam, em seu próprio interesse, para defender o
capital dos acionistas certamente estão chocadas, atônitas. Mas espero que uma das vítimas da crise não venha a ser a idéia de vigilância por parte do
próprio mercado, e em termos
mais amplos o uso da auto-regulamentação como forma de
propiciar equilíbrio fundamental às finanças mundiais.
Os problemas, pelo menos
nos estágios iniciais da crise foram mais pronunciados entre
os bancos, cujo sistema de regulamentação é bastante elaborado já há muitos anos. É
certo que os sistemas utilizados
para estabelecer requisitos de
capitalização bancária desenvolvidos ao longo das duas últimas décadas passarão por
substancial reforma, à luz das
recentes experiências. De fato,
os investidores privados já estão exigindo cauções e capital
mais fortes, e os especialistas
reunidos sob os auspícios do
Banco de Compensações Internacionais (BIS) certamente
emendarão as regras do acordo
regulatório Basiléia 2, recentemente assinado. Outro fator
questionado, ao menos tangencialmente, são os elegantes modelos matemáticos de previsão
econômica que uma vez mais se
provaram incapazes de antecipar uma crise financeira ou o
início de uma recessão.
Os sistemas do mercado de
crédito e seus graus de endividamento e liquidez têm por
raiz a confiança em que as contrapartes são solventes. Essa
confiança sofreu sério abalo em
9 de agosto de 2007, quando o
BNP Paribas revelou grandes
prejuízos imprevistos em suas
transações com títulos "subprime" (alto risco) americanos. Os
sistemas de administração de
risco e os modelos que os embasam supostamente deveriam
nos proteger contra prejuízos
superdimensionados. O que
saiu errado?
O que deu errado?
O problema essencial é que
os nossos modelos tanto os de
risco quanto os econométricos,
por mais complexos que se tenham tornado, ainda assim são
simples demais para capturar a
ampla gama de variáveis que
definem e propelem a realidade
econômica mundial.
Um modelo representa necessariamente uma abstração,
com relação aos detalhes plenos do mundo real. Respeitando a antiga tradição de que diversificação representa redução de risco, os computadores
trabalham com imensos volumes de dados históricos em
busca de correlações negativas
entre os preços dos ativos negociáveis, correlações que poderiam ajudar a isolar as carteiras
de investimentos contra as oscilações mais amplas da economia. Mas quando esses preços
de ativos, em lugar de compensarem os movimentos uns dos
outros, despencaram em uníssono, em 9 de agosto do ano
passado, surgiram prejuízos
imensos em virtualmente todas as classes de ativos de risco.
A explicação mais confiável
quanto ao desempenho tão medíocre de modelos estatísticos
desenvolvidos segundo as mais
modernas técnicas é que os dados subjacentes utilizados para
estimar a estrutura dos modelos são extraídos tanto de períodos de euforia quanto de períodos de medo, ou seja, de regimes que apresentam dinâmicas
diferentes em muitos aspectos
importantes.
A fase de contração dos ciclos
de crédito e negócios, propelida
pelo medo, historicamente
vem sendo muito mais curta e
muito mais abrupta do que a fase de expansão, propelida por
um acúmulo lento mas cumulativo de euforia. Ao longo dos
últimos 50 anos, a economia
norte-americana só esteve em
contração um sétimo do tempo. Mas é o momento em que
esses períodos se iniciam que é
o objetivo dos sistemas de administração de risco. Correlações negativas entre classes de
ativos, tão evidentes durante
uma expansão, podem entrar
em colapso quando todos os
preços de ativos caem juntos, o
que solapa a estratégia de melhorar o equilíbrio entre risco e
recompensa por meio da diversificação.
Se pudéssemos modelar adequadamente cada fase do ciclo,
em separado, e adivinhar que
sinais nos indicariam que um
regime está a ponto de mudar,
os sistemas de administração
de riscos poderiam ser muito
melhorados. Um problema difícil é que boa parte do comportamento dúbio dos mercados
financeiros que emerge cronicamente durante uma fase de
expansão resulta não da ignorância ou de uma má avaliação
dos riscos, mas da preocupação
de que, ao menos que uma empresa participe da euforia em
curso, ela perderá mercado de
maneira irrecuperável.
Vulnerabilidade
A administração de riscos
procura maximizar os níveis de
retorno sobre o capital, ponderados de acordo com o risco;
muitas vezes, no processo, o capital subutilizado é considerado como "desperdício". Os dias
em que os bancos se orgulhavam de suas excelentes classificações de crédito e em que chegavam a dar a entender (muitas
vezes com razão) que possuíam
reservas financeiras secretas, o
que lhes conferia uma aura de
invulnerabilidade, há muito
são coisa do passado.
Hoje, ou pelo menos antes do
9 de agosto de 2007, os ativos e
o capital que definem uma classificação de crédito excelente,
ou costumavam fazê-lo, são caros demais em termos de competitividade.
Não quero dizer que os sistemas atuais de administração de
risco ou previsão econométrica
não tenham, em larga medida,
raízes sólidas no mundo real. A
exploração dos benefícios da
diversificação nos modelos de
administração de riscos é inquestionavelmente sólida, e o
uso de um modelo macroeconométrico elaborado gera disciplina nas previsões. Ele requer, por exemplo, que a poupança equivalha ao investimento, que a propensão marginal de consumo seja positiva e
que os estoques não sejam negativos. Essas restrições, entre
outras, eliminaram a maior
parte das incômodas inconsistências nas projeções financeiras de meio século atrás.
Ciclos de euforia e medo
Mas esses modelos não capturam com exatidão aquilo que
foi, até o momento, apenas um
adendo periférico à modelagem de ciclos de negócios e financeiros: as respostas humanas inatas que resultam em oscilação entre euforia e medo, as
quais se repetem de geração em
geração, com poucos indícios
que haja uma curva de aprendizado em ação. As bolhas nos
preços dos ativos se acumulam
e explodem hoje como o fazem
desde o começo do século 18,
quando os mercados competitivos modernos começaram a
evoluir. É certo que tendemos a
classificar essas respostas comportamentais como não racionais. Mas as preocupações de
quem realiza previsões não deveriam se dirigir à racionalidade ou não das respostas humanas, e sim apenas ao fato de que
elas sejam passíveis de observação, e sistemáticas.
Esta, para mim, é a grande
"variável explanatória" ausente
tanto nos modelos de administração de risco quanto dos macroeconométricos. A prática
atual envolve introduzir o conceito de "vigor animal", como
diria John Maynard Keynes, na
forma de "fatores de adição".
Ou seja, nós alteramos arbitrariamente o resultado das equações de nossos modelos. Mas
adicionar fatores é um reconhecimento implícito de que
esses modelos, na forma pela
qual os empregamos atualmente, padecem de uma deficiência
estrutural; eles não tratam em
extensão suficiente do problema da variável ausente.
Jamais seremos capazes de
antecipar todas as descontinuidades nos mercados. Elas representam, necessariamente,
surpresas. Os eventos antecipados são computados nos modelos. Mas se, como suspeito
fortemente, os períodos de euforia são difíceis de suprimir
em seu processo de acumulação, eles não entrarão em colapso até que a febre especulativa passe sem ajuda. Paradoxalmente, na medida em que a
administração de risco pode
obter sucesso na identificação
de episódios como esse, ela se
torna capaz de prolongar e ampliar o período de euforia. Mas
a administração de risco jamais
atingirá a perfeição. Ela terminará por fracassar, e uma realidade perturbadora será exposta, revelando uma resposta descontínua inesperada e intensa.
Na crise atual, como em crises anteriores, podemos aprender muito. E as futuras decisões
econômicas serão influenciadas por essas lições. Mas não
podemos esperar que seja possível antecipar os detalhes específicos de futuras crises, ao
menos não de forma confiante.
Por isso se torna importante,
ou mesmo crucial, que quaisquer reformas e ajustes à estrutura do mercado e da regulamentação não inibam nossas mais confiáveis e efetivas salvaguardas contra os erros econômicos cumulativos: a flexibilidade do mercado e a livre competição.
ALAN GREENSPAN foi presidente do Federal
Reserve (1987-2006) e é autor de "A Era da Turbulência" (ed. Campus)
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