São Paulo, segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

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WILLIAM WHITE

Pressão para que asiáticos deixem de intervir no mercado de câmbio pode provocar alta de juros nos EUA

Queda do dólar cria armadilha, diz economista do "BC mundial"

ÉRICA FRAGA
ENVIADA ESPECIAL À BASILÉIA

A persistente desvalorização do dólar ameaça colocar as principais autoridades econômicas do mundo frente a uma armadilha. Os governos dos países desenvolvidos tendem a pressionar China e Japão para que deixem de fazer pesadas intervenções no mercado que visam a evitar a valorização de suas moedas.
Mas isso pode trazer outro alto custo para as economias norte-americana e mundial: uma elevação de juros nos Estados Unidos.
A opinião é de um dos maiores especialistas em finanças internacionais: William White, economista-chefe do BIS (sigla em inglês para Banco de Compensações Internacionais), espécie de Banco Central dos Bancos Centrais.
"Se o dólar continuar se desvalorizando, é bastante provável que países asiáticos, como China e Japão, sofram pressão política para reduzir o ritmo de compras da moeda norte-americana", disse White em entrevista à Folha, na última segunda-feira.
Atualmente, ocorre o seguinte: o dólar tem se desvalorizado, as moedas asiáticas, via intervenção das autoridades da região, também e, com isso, o euro vem sofrendo forte apreciação. Para a Europa, isso é ruim porque representa uma ameaça às exportações do país para outras regiões.
Se os bancos centrais de países como Japão e China deixam de comprar títulos da dívida do governo norte-americano, as moedas asiáticas passam a se apreciar como o euro. É uma forma de dividir os custos da recente mudança relativa nos preços das moedas.
O risco disso é que, ao diminuir a demanda externa pelos títulos de longo prazo do tesouro norte-americano, esses papéis tendem a perder valor. Com isso, terão de pagar mais juros a investidores para aumentar sua atratividade.
E um aumento rápido de juros nos EUA pode representar séria ameaça à recuperação da economia do país e, portanto, do resto do mundo.
Em relação ao Brasil, White diz que os últimos governos têm feito "as coisas certas". Defende, no entanto, a aprovação da autonomia do BC como essencial.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
 

Folha - Considerando a forte volatilidade das taxas de câmbio, o que se pode esperar em termos de política por parte dos governos?
William White -
O que tem sido surpreendente é como todo esse processo tem se desenrolado de forma ordenada. O dólar se desvalorizou de forma bastante significativa, mas ainda não houve nenhum momento em que tenhamos olhado para o tamanho dos movimentos e nos sentido terrivelmente preocupados.
O euro, particularmente, ainda não atingiu níveis verificados antes de sua introdução.
Mas está claro que quanto mais o euro suba, maior será o custo do ajuste imposto às indústrias de bens transacionáveis na Europa. E isso será desconfortável. Por isso, a velocidade da mudança, o quão rapidamente as indústrias poderão se adaptar à essa velocidade, é algo que certamente as autoridades monetárias estão monitorando com muito cuidado.

Do lado europeu, a preocupação é que uma forte apreciação do euro derrube lucros, a confiança dos empresários e o investimento

A alta da produtividade [nos Estados Unidos] está levando a ganhos que estão indo para lucros e não para aumentos de salários


Se a política monetária reagirá a isso ou não, é difícil dizer. Uma coisa sobre a qual você pode ter certeza é que, se implicações desinflacionárias na área do euro levarem a mais desinflação do que o BCE [Banco Central Europeu] gostaria, suponho que haverá alguma resposta em termos de política monetária dentro do modelo de metas inflacionárias.

Folha - Alguns analistas estimam que o euro atingirá US$ 1,50 ou US$ 1,60 até o fim do ano. A partir de que nível de valorização o setor exportador poderá ter prejuízos?
White -
Isso não é um processo descontínuo. Há um consenso de que o quanto mais subir [a cotação do euro] e, especialmente, o quanto mais rápido isso ocorrer, mas desconfortável se tornará. Não acho que haja um ponto específico sobre o qual possamos dizer: está bem até aqui, mas, além disso, temos um problema.
Além disso, diferentes setores têm diferentes margens de manobra. Algo que temos de lembrar sobre taxas de câmbio é que a média das previsões sobre elas no passado foi frustrante.
Outro aspecto que é muito importante é o que vai acontecer com as moedas asiáticas, porque lá tem havido uma defesa muito impetuosa das taxas de câmbio, particularmente, por parte da China e do Japão.
À medida que o declínio da moeda norte-americana é acompanhado pelo declínio de outras moedas, se há a necessidade de uma depreciação efetiva do dólar, isso tende a colocar pressão naquelas moedas que estão flutuando.
Eu suponho que haverá pressões políticas para que os países, especialmente aqueles com grandes superávits em suas contas correntes, passem a jogar o que alguns chamariam de "um papel justo" no processo de ajuste do dólar. Mas essa será uma discussão altamente política.

Folha - Quais seriam as conseqüências disso?
White -
Pela perspectiva dos Estados Unidos -que, considerando seu grande déficit em conta corrente, estão preparados para ver algum ajuste do lado da taxa de câmbio- você pode interpretar isso dizendo que os países asiáticos deveriam intervir menos e deixar suas moedas subirem. Mas à medida que intervenham menos, eles terão menos recursos para reinvestir de volta nos EUA.
Para muitas pessoas, essa [a intervenção] é uma das razões pelas quais as taxas dos títulos de longo prazo não subiram o tanto quanto poderiam. Em caso de os asiáticos ajustarem muito, isso terá implicação não apenas para a cotação do dólar, mas também para as taxas de juros norte-americanas.
O que concluímos é que é preciso um ajuste do ponto de vista do comportamento dos asiáticos, que têm acumulado muitas reservas. Mas, certamente, não uma suspensão completa de suas atividades intervencionistas, porque isso pode acabar sendo desconfortável de outra forma.

Folha - O ritmo de recuperação da economia mundial é sustentável?
White -
Digamos que vamos torcer que seja sustentável. Os números, virtualmente em todos os grandes países industriais, têm sido mais satisfatórios do que esperávamos. Isso é um fato. Há uma suposição de que isso continuará. Se olhar para o consenso das estimativas, notará que as pessoas estão se tornando mais otimistas.
Mas, em vez de falar em sustentabilidade, acho que o melhor é falar sobre alguns riscos potenciais das previsões. E eles sempre existem. Do lado europeu, a maior preocupação é que uma forte apreciação do euro derrube lucros, a confiança dos empresários e o investimento. Não é uma previsão, mas, falando em estimativas, é uma possibilidade.
Nos EUA, é claro, um dos riscos é uma depreciação do dólar que ocorra de forma desordenada e possa ter efeito nas taxas de juros de longo prazo. Há também o crescente nível de endividamento do consumidor que pode levar em um momento a uma contração do consumo.
As preocupações podem se materializar em uma eventual elevação de taxas de juros, porque elas estão em níveis muito baixos. Alguns estimam que a taxa natural de juros [taxa de equilíbrio de longo prazo] nos EUA pode ser de 5%, enquanto a taxa atual é de 1%.
Portanto a política monetária terá de elevar essas taxas em algum momento. A questão é qual seria a reação daqueles que têm alto nível de endividamento. Mas pode ser que muitas pessoas, particularmente no mercado imobiliário, estejam "trancadas" em taxas de financiamento de longo prazo e, com isso, não haveria grande motivo para preocupação.
No Japão, nós vimos progresso significativo na reestruturação corporativa, particularmente com as empresas grandes. Mas as pequenas ainda representam um quebra-cabeça.
A reforma no setor bancário também tem tido progressos, mas de uma forma que ainda não dá para ter certeza se já é suficiente para garantir uma expansão contínua do crédito de forma a sustentar a recuperação.
Quando você olha para todas essas coisas, o consenso, provavelmente, ainda está correto.
Mas há preocupações e, à medida que nos movemos no espírito do otimismo, é preciso olhar por cima do ombro para ter certeza de que nada vai te atropelar.

Folha - O fato de a economia norte-americana estar se recuperando sem gerar emprego é uma ameaça?
White -
É certamente uma preocupação no sentido de que há sempre as boas notícias e as más notícias. O lado bom é que houve um notável aumento da produtividade nos EUA. O inesperado era a extensão em que isso se traduziu em uma repercussão nos lucros. Chegou a um ponto que nem foi muito bom, porque o que levou à recessão num primeiro momento foi um colapso nos lucros e nos investimentos.
Mas agora os lucros estão aí e a esperança é que o aumento dos lucros somado à desvalorização do dólar levará a mais investimentos, a uma maior demanda agregada e, eventualmente, a uma maior oferta de trabalho. Essa seria a história convencional.
O outro lado da história é que a alta da produtividade está levando a ganhos que estão indo para lucros e não para aumentos de salários. E isso se manifesta de duas formas: uma delas é a recuperação sem trabalho e a outra, o fato de ter havido menos volatilidade nos salários reais do que o desejável.
Tanto a falta de criação de empregos como a escassez de renda pode, talvez, levar a menos consumo, seja por falta de confiança, seja por falta de dinheiro.
A preocupação seria ocorrer uma certa retração do consumo por parte dos assalariados antes de se ver os benefícios totais do lado do investimento, em consequência dos lucros maiores.
Então, é uma espécie de corrida. Neste momento, parece que o investimento voltará antes de que o consumo se retraia.

Folha - Por que a autonomia do BC brasileiro é tão importante?
White -
Em países como o Brasil, considerando a sua história, é importante que haja uma estrutura institucional que permita às pessoas concluírem que não haverá retrocesso para o tipo de ciclo "inflação, depreciação, inflação, depreciação". Por medidas adotadas nos últimos anos, o país já conseguiu gerar bastante credibilidade.
O que achei impressionante foi que, quando o real se depreciou em 1999, as implicações para a inflação foram extraordinariamente baixas em comparação com níveis históricas. Em parte, isso parece ter acontecido porque as pessoas comuns sentiram que não queriam voltar para o ciclo de inflação e depreciação do passado.
Mas também é bom que haja uma estrutura institucional que diga que você precisa fazer as coisas certas.


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