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MARCOS CINTRA
Calote constitucionalizado
O projeto que permite que os
governos definam quanto
pagarão de precatórios
revela desprezo pelo cidadão
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Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?
(Até quando, Catilina, abusarás de nossa
paciência?)
Cícero, 106-43 a.C.
ESTÁ EM tramitação no Senado
uma proposta indecente: um
projeto de emenda à Constituição que, se aprovado, comprova
exuberantemente a tibieza do caráter cívico dos brasileiros, que tudo
aceitam, tudo acomodam, mesmo
sendo alvos das mais odiosas injustiças e perversidades.
Não estou me referindo à violência física que grassa livremente em
nosso país. Por sinal, já assinei o manifesto virtual que circula na internet a favor de medidas urgentes para
evitar que continuem ocorrendo
barbaridades como a que acometeu
o menino João Hélio. Mas não consigo evitar o mal-estar no estômago
ao imaginar que, como antes, nada
vai acontecer.
Lembro-me dos inúmeros outros
momentos de extrema comoção
causados por crimes bárbaros cometidos contra outros inocentes e
que não resultaram em nenhuma
providência efetiva contra o estado
de barbárie que impera no Brasil.
Sempre surgem os "comedidos",
os que apelam a um tipo imbecil de
serenidade que acaba impedindo a
sociedade de se defender e de adotar
medidas emergenciais capazes de
atenuar os males que a afligem. As
soluções são sempre adiadas, à espera de momento mais oportuno, de
menor emoção. Essa ridícula tolerância torna o brasileiro uma população de seres destituídos de vontade, de sentimento de indignação e,
sobretudo, sem capacidade de mudar, de reformar, de melhorar.
Essa tolerância, que, como disse
Marquês de Sade, é a virtude dos fracos, tem tornado o Brasil um país de
néscios, de indiferentes, de egoístas
e de mortos-vivos sem sangue nas
veias. Vivemos em uma geléia geral,
sem princípios, sem regras, sem destino, em que vale tudo, onde impera
a truculência do mais forte na política, na economia, na vida urbana, nas
relações pessoais.
O projeto de emenda constitucional nš 12/2006 é mais uma dessas
infamantes propostas que revelam
desprezo pelos cidadãos. Pelo projeto, a União, os Estados e os municípios poderão "optar, por ato do Poder Executivo", e definir o percentual (mínimo de 3% para Estados e
1,5% para municípios) de suas despesas primárias líquidas que será
utilizado no pagamento de precatórios. O pagamento será feito em
grande parte mediante leilões, nos
quais os desesperados credores, tal
qual os gladiadores na Roma Antiga,
vão se trucidar mutuamente para
receberem frações ínfimas do que
lhes é devido.
É evidente que os 3% serão teto, e
não piso, dos pagamentos. Algumas
contas elementares mostrarão que a
grande maioria dos governos que
têm precatórios a pagar poderá jamais saldar integralmente as dívidas
contraídas, mesmo tendo sofrido
condenação pelo Poder Judiciário,
sob pena de intervenção, segundo a
Constituição.
Se aprovado, o Estado continuará
espezinhando os direitos dos cidadãos brasileiros que têm valores a
receber do governo; a Carta Magna
continuará sendo desrespeitada pelo próprio Poder Judiciário, que tolerantemente não decreta as intervenções; e os políticos continuarão a
zombar até mesmo daqueles que
têm precatórios alimentares a receber. Os precatórios devidos apenas
pelos Estados, pelo Distrito Federal
e pelos municípios somam cerca de
R$ 63 bilhões. Isso dá uma idéia do
tamanho do calote. São Paulo, o
mais rico -e pretensamente saneado- Estado da Federação, pagou no
ano passado precatórios alimentares que deveriam ter sido quitados
em 1998.
O Estado esquizofrênico mostra
suas duas faces: o mau pagador de
um lado e o eficiente agente arrecadador de outro, aprimorando sempre suas garras fiscais, como acaba
de fazer com a criação da Super-Receita.
A aprovação da PEC 12/2006 é o
calote constitucionalizado. Como
diz a Ordem dos Advogados do Brasil, "a PEC viola a coisa julgada, o direito adquirido, a moralidade administrativa e a dignidade da pessoa
humana". Vale dizer que os direitos
dos credores do governo já foram legislativamente violentados duas vezes. A primeira, quando foram parcelados em oito vezes (1988); a segunda, em mais dez vezes (2000). E
agora mais essa indignidade.
A paciência se aproxima tanto do
desespero que só nos resta alertar,
como fez o poeta inglês J. Dryden, a
tomar "cuidado com a fúria do homem paciente".
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE , 60,
doutor pela Universidade Harvard (EUA), professor titular
e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas, foi deputado federal (1999-2003). É autor de "A verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003). Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
Internet: www.marcoscintra.org
mcintra@marcoscintra.org
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