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São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2003

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ARTIGO

O que preocupa é o que virá depois

PAUL KRUGMAN

Com certeza venceremos no campo de batalha, e provavelmente com facilidade. Não sou especialista em assuntos militares, mas lido bem com números: o mais recente orçamento militar dos Estados Unidos atingiu os US$ 400 bilhões, enquanto os gastos anuais iraquianos são de US$ 1,4 bilhão.
O que me assusta é o que acontecerá a seguir -e não estou falando apenas dos problemas de ocupação no pós-guerra. Preocupo-me com o que acontecerá para além do Iraque -no mundo em geral e nos Estados Unidos.
Os membros do governo George W. Bush não parecem incomodados pela enorme carga de sentimentos negativos que engendraram no resto do mundo. Parecem acreditar que os demais países mudarão de idéia assim que virem os iraquianos recebendo as tropas americanas com alegria, ou que nossas bombas chocarão e atemorizarão todo o planeta (não apenas os iraquianos), ou talvez que não importa o que o mundo pense. Mas eles estão errados quanto a tudo isso.

Desconfiança
A vitória no Iraque não vai minar a desconfiança mundial quanto aos Estados Unidos, porque o governo Bush deixou claro, várias vezes, que não respeita as regras do jogo. Lembre-se: esse governo disse à Europa que cuidasse sozinha do aquecimento global, disse à Rússia que instalaria uma defesa contra mísseis não importa o que os russos pensassem, disse aos países em desenvolvimento que não interferissem no comércio de produtos farmacêuticos essenciais para eles, disse ao México que resolvesse o problema de seus emigrantes, insultou mortalmente os turcos e abandonou o Tribunal Penal Internacional -e tudo isso em apenas dois anos.
E o poderio militar, como já vimos, não serve como substituto para a confiança. Aparentemente o governo Bush achava que seria capaz de intimidar o Conselho de Segurança da ONU a aprovar seus planos. Mas a verdade é outra. "O que os norte-americanos podem fazer contra nós?", perguntou o funcionário de um governo africano. "Vão nos bombardear? Vão nos invadir?"
Enquanto isso, considere o seguinte: os Estados Unidos precisam de US$ 400 bilhões ao ano em investimento estrangeiro a fim de cobrir o déficit comercial, senão o dólar despencará e a alta do déficit orçamentário se tornará muito mais difícil de financiar -e já surgiram sinais de que o fluxo de investimento estrangeiro está secando, no exato momento em que os EUA parecem prestes a lutar toda uma série de guerras.

Neoconservadores
É de conhecimento público que essa guerra contra o Iraque foi em larga medida fruto do pensamento de um grupo de intelectuais neoconservadores, que a encaram como projeto piloto. Em agosto, um funcionário britânico que conhece bem o governo Bush disse à revista "Newsweek" que "todo mundo quer invadir Bagdá. Mas os homens de verdade querem invadir Teerã". Em fevereiro deste ano, de acordo com o jornal israelense "Ha'aretz", o subsecretário de Estado norte-americano John Bolton disse a representantes do governo israelense que depois de derrotar o Iraque os Estados Unidos "tratariam" do Irã, Síria e Coréia do Norte.

Próximos alvos
Será que o Iraque será mesmo o primeiro de muitos conflitos? Parece muito provável -e não só porque a doutrina George W. Bush aparentemente exige uma série de guerras. Os regimes que estiverem na lista de alvos ou acreditarem estar na lista de alvos não vão esperar sentados pelo momento de um ataque. Vão se armar até os dentes e talvez atacar primeiro. As pessoas que realmente sabem do que estão falando têm muito medo do programa nuclear norte-coreano e encaram uma guerra na península coreana como algo que pode começar a qualquer momento. E, no ritmo que as coisas avançam, me parece que combateremos essa guerra, ou a guerra com o Irã, ou ambas a um só tempo, sozinhos.

Falta de patriotismo
O que mais me assusta, porém, é a frente doméstica. Vejam como essa guerra aconteceu. Existem argumentos em favor de tratar o Iraque severamente; tenha em mente que o governo Clinton se exasperou a ponto de considerar uma campanha de bombardeio em 1998.
Mas não é esse o argumento que o governo Bush apresentou. Em lugar disso, fizemos asserções sobre um programa nuclear as quais, na verdade, se baseavam em provas falsas ou insuficientes; e as alegações quanto a uma ligação entre o Iraque e a Al Qaeda são vistas como tolice por pessoas dos serviços de informações. No entanto, essa sequência de embaraços passou quase completamente sem menção na imprensa dos Estados Unidos. Por isso, a maioria dos norte-americanos não tem idéia dos motivos para que o resto do mundo não confie nas alegações do governo George W. Bush. E, assim que os tiros começarem, o coro já ruidoso que denuncia qualquer crítica como falta de patriotismo se tornará ensurdecedor.
Assim, o governo sabe agora que pode fazer alegações sem fundamento e que não precisará pagar o preço quando essas alegações forem provadas falsas, bem como que retórica bélica vale votos e ajuda a calar a oposição. Talvez se recuse, honradamente, a agir com base nesse perigoso conhecimento. Mas não posso evitar a preocupação quanto à possibilidade de que na política interna, como na internacional, essa guerra tenha demonstrado o caminho do futuro.


Paul Krugman, economista e professor da Universidade Princeton (EUA), é colunista do "The New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


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