São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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OPINIÃO ECONÔMICA

Fome Zero para exportações!

RUBENS RICUPERO

O estrago do câmbio é lento, gradual e seguro, como a abertura do general Geisel. Tal qual a experiência de economizar com a comida do cavalo, reduzindo-lhe a ração, um pouco de cada vez, para ver no que dá. Quando parece que o bichinho está começando a se acostumar, infelizmente ele tem o mau hábito de morrer.
Os apologistas da política econômica escamoteiam ou minimizam sua inelutável conseqüência, o desastre cambial responsável pela nossa segunda copa mundial além da dos juros altos, a da moeda que mais se apreciou contra o dólar, "the hardest currency in the world", conforme o "Financial Times". Afinal, alegam, ele não impediu até agora o aumento (cada vez menor) da exportação de manufaturas.
O argumento é do mesmo valor que o da experiência do cavalo: até o animal esticar as botas, ou melhor, as ferraduras, pode-se alegar que a dieta está dando certo. O que não se tem interesse de dizer é que "os manufaturados vêm registrando desaceleração firme e contínua desde o início de 2005, reduzindo a taxa de crescimento acumulada em 12 meses de cerca de 28% para pouco mais de 9% em um ano" (boletim de fevereiro de 2006 da Funcex).
A explicação está também na Funcex: já em outubro passado, a rentabilidade das exportações tinha mergulhado ao nível mais baixo desde que se começou a calcular o índice, em 1985. Só se consegue exportar quando o aumento do preço internacional compensa a valorização do real: petróleo (aumento de volume de 238% em relação a janeiro de 2005), soja (133%), minério de ferro (71%) e, para não faltar o elemento de continuidade com a economia colonial, os nossos velhos conhecidos, o açúcar e o café.
A conseqüência, de acordo com a Funcex, é que "houve inequivocamente aumento da concentração do crescimento das exportações segundo produtos, a partir de meados de 2004 (...) Quanto mais concentrado o crescimento, menor tende a ser a taxa de crescimento total (...) A tendência de aumento dessa concentração é, assim, sem dúvida, uma má notícia".
Traduzindo em vernáculo, o aumento das exportações se concentra cada vez em número menor de produtos primários de baixo valor agregado e que foram capazes de aumentar os preços. Se continuar assim, voltaremos ao tempo em que todos os produtos brasileiros, com exceção do café, eram "gravosos", isto é, inexportáveis por causa do câmbio.
Ricardo Markwald e Fernando Ribeiro observam que "o surto nas exportações não foi acompanhado por nenhuma mudança significativa na estrutura setorial ou na composição (...) A concentração da pauta pouco se alterou, não houve incorporação de novos produtos e a exportação de produtos de alta tecnologia declinou. Os únicos fatos dignos de destaque são a expansão, muito significativa, das vendas de combustíveis e derivados e a (menor) de alguns bens de capital, como os tratores e máquinas agrícolas", cuja demanda interna desabou devido à crise da agricultura. A conclusão é que "a forte apreciação cambial (...) a partir de meados de 2004 levanta dúvidas em relação à continuidade do (ainda breve) surto nas exportações" ("O surto exportador recente", "Revista Brasileira de Comércio Exterior", nš 85).
Se for preciso outro sinal, ei-lo à mão: em fevereiro, tivemos a primeira queda do saldo, comparado ao mesmo mês do ano anterior, desde, pasme, julho de 2001!
É chato ser Cassandra, mas o fato é que ela tinha razão sobre o cavalo de Tróia: quem não quis ouvir acabou massacrado ou escravizado. Tapar o ouvido para continuar no baile da ilha Fiscal é semelhante ao que fez o duque de Guermantes, de Proust. Ele se preparava para vestir a fantasia encomendada para um ansiado baile de máscaras quando duas primas agourentas lhe comunicaram que um seu parente acabava de morrer. Recusando renunciar a um prazer, o duque exclama "On exagère, on exagère" ("exageram") e toca para o baile.
Aconselha-se a quem quiser fazer o mesmo que dance perto da porta de saída. Ou peça ao ministro Patrus Ananias para ir preparando uma Bolsa-Esmola.


Rubens Ricupero, 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

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