São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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ENTREVISTA

Nobel de Economia encabeça abaixo-assinado enviado a George W. Bush que pede descriminalização da droga

"Legalize já (a maconha)", diz Friedman, 92

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

Em "Insignificância", um dos filmes mais interessantes e menos conhecidos de Nicolas Roeg, o cineasta de "Inverno de Sangue em Veneza" coloca juntos no mesmo hotel numa noite dos anos 50 o físico Albert Einstein, a atriz Marilyn Monroe, o jogador de beisebol Joe DiMaggio e o senador Joseph MacCarthy. O encontro, é claro, nunca aconteceu. Assim como não aconteceu o de Milton Friedman, 92, o papa do neoliberalismo, teórico e defensor mais ferrenho do livre mercado, com o rei do reggae Bob Marley (1945-81). Mas vale imaginar o diálogo:
"Legalize já?", diria Marley, repetindo o slogan da legalização da maconha. "Legalize já", responderia Milton Friedman.
Na semana retrasada, o Prêmio Nobel de Economia de 1985 e membro do conservador Instituto Hoover, na Califórnia, encabeçou uma lista de 500 economistas enviada ao presidente George W. Bush e aos membros do Congresso norte-americano que pedia a legalização da maconha.
Ele baseia seu pedido no estudo recém-divulgado de um economista de Harvard que calcula que a medida economizaria US$ 14 bilhões por ano ao país (leia texto nesta página).
Friedman apóia a medida por razões econômicas, mas também morais. "Nos últimos mil anos, nunca houve uma morte por overdose de maconha", disse o economista norte-americano em entrevista exclusiva à Folha, repetindo um argumento que milhões de adolescentes do mundo sabem de cor. Leia a conversa:

Folha - "Legalize já"?
Milton Friedman -
Sim. É imoral que os Estados Unidos proíbam as chamadas drogas ilegais. Sou a favor da legalização de todas as drogas, não apenas da maconha. O atual estado das coisas é uma desgraça social e econômica. Veja o que acontece todos os anos neste país: colocamos milhares de jovens na prisão, jovens que deveriam estar se preparando para o seu futuro, não sendo afastados da sociedade. Além disso, matamos milhares de pessoas todos os anos na América Latina, principalmente na Colômbia, na tal "Guerra contra as Drogas".
Nós proibimos o uso das drogas, mas não podemos garantir que elas não sejam de fato consumidas. Isso só leva à corrupção, à violação de direitos civis. Acho que o programa contra as drogas dos EUA é uma monstruosidade e ele é que devia ser eliminado. A maconha é apenas um pequeno pedaço desse problema, mas essa equação pode ser aplicada a qualquer droga hoje em dia ilegal.

Folha - E o que o senhor acha que deve acontecer com as drogas que são vendidas legalmente, com exigência de receita médica, mas que também são usadas com fins recreativos, como analgésicos à base de codeína?
Friedman -
Defendo a liberação total de todas as drogas. Vicodin, que é um analgésico poderoso, deveria ser vendido legalmente, sem a exigência de uma receita médica. Essas drogas são liberadas ou não para consumo da população, com as devidas ressalvas, pelo órgão federal que as controla [FDA - Food and Drug Administration]. Pois acho que o FDA causou muito mais danos do que benefícios à população.
Veja o caso recente de remédios que foram liberados às pressas e mataram milhares. Se o órgão julgasse a eficiência das drogas no lugar de regular o seu uso, baixaria o custo das pesquisas para a invenção de novas drogas, que é o que importa de verdade.

Folha - Entendo que uma pessoa como o senhor tenha primeiro se interessado pelo aspecto econômico da legalização das drogas. Mas e o moral? O sr. não acha que haveria um boom de consumo nos primeiros anos após uma lei como essa ser aprovada, conseqüentemente com mais mortes?
Friedman -
As pessoas aprendem com a experiência, e não precisa ser a própria experiência, a dos outros também ensina. Não vejo nenhuma vantagem em legalizar uma droga com ressalvas. Todo mundo sabe como conseguir a receita de um remédio que quer usar para recreação.

Folha - E o sr. defende que todas as drogas deveriam ser vendidas em qualquer quantidade, em qualquer lugar? A Holanda, por exemplo, um dos países mais liberais nesse assunto, tem bares em que usuários podem comprar e fumar, mas não levar.
Friedman -
Defendo que seja como o cigarro, como a bebida alcoólica. Cada um compra quanto quer e usa como quer.

Folha - Na mesma semana do economista de Harvard, o governo divulgou um estudo segundo o qual a maior parte dos presos por maconha se tornam "criminosos violentos, reincidentes e traficantes".
Friedman -
Nada do que o governo faz com quem é pego usando ou vendendo drogas serve para educar o cidadão. Eles dizem isso porque precisam justificar a prisão de tantos jovens que vêem seu futuro ser quase fatalmente atingido quando são presos com droga. Muitos dos presos são realmente perigosos e criminosos, mas a maioria não é.

Folha - Posso fazer uma questão pessoal? O sr. já fumou maconha? Ou usou droga ilegal?
Friedman -
Não, nunca, mas não quero me comprometer com essa resposta. Talvez eu decida usar um dia e não quero ser considerado um criminoso por isso. Não tenho nenhuma objeção ao desejo de usar drogas, eu simplesmente nunca tive interesse.

Folha - E se um dia as drogas fossem legalizadas, usaria?
Friedman -
Talvez sim, talvez não. Mas eu comemoraria o fato de alguma maneira.

Folha - Em um de seus textos mais recentes, o sr. escreve que os níveis de analfabetismo nos EUA "são absolutamente criminosos, mantidos apenas pelo poder dos sindicatos dos professores". O sr. realmente acha que o motivo de a nação mais rica e poderosa do mundo não ter resolvido seu sistema educacional de maneira satisfatória é culpa de alguns sindicalistas?
Friedman -
Agora você me pegou (risos). Eu realmente não tenho uma boa resposta para essa pergunta. Poderia dizer que geralmente os países que oferecem maiores recompensas para os professores se saem melhor, como os da União Européia nessa área. Não sei o que responder...

Folha - O sr. também escreveu: "O déficit é a única razão que impede este Congresso de gastar mais, não há diferenças entre republicanos e democratas. Gastar é a maneira mais fácil de comprar votos". O sr. continua republicano?
Friedman -
Com erre maiúsculo. Mas acho que até agora o presidente Bush tem feito um péssimo trabalho. Os gastos só aumentaram. Ele está se saindo um pouco melhor do que no primeiro mandato, mas ainda está tudo ruim. Quanto ao Congresso, políticos são políticos. É a melhor profissão do mundo: gastar o dinheiro dos outros. Você faria o mesmo se estivesse lá (risos).

Folha - Ainda sobre o governo Bush, o sr. acha que a invasão do Iraque foi uma medida inteligente, seja economicamente, seja no aspecto moral?
Friedman -
Não apoiei a invasão do Iraque. Agora que já estamos lá, no entanto, temos de achar um jeito de sair de uma maneira honrada e decente o mais rápido possível. Dito isso, certamente não havia uma motivação econômica justificável para a invasão, assim como não havia para a primeira Guerra do Golfo.
Os produtores de petróleo norte-americanos não ganham nada com essa guerra. Faria mais sentido econômico se nós tivéssemos invadido Dallas e vendido o petróleo de lá ao mercado mundial, pelos preços do mercado mundial. Acho que fomos à guerra porque o presidente realmente acreditava que havia armas de destruição de massa e que o mundo corria perigo por isso. É uma boa razão para ter derrubado Saddam Hussein, mas ainda defendo o pensamento de outro George, Washington: "Devemos ser amigos de todos os países".

Folha - Se fosse chamado a palpitar, o que diria para melhorar a economia do Brasil?
Friedman -
Não posso responder. Estive no país há 10 ou 15 anos apenas por alguns dias e achei e acho a sua economia muito complicada. Sei, no entanto, que o livre mercado está funcionando em muitos países. No Chile. Mas a maioria dos países da América Latina ainda não foi exposta ao capitalismo...

Folha - O que acha da decisão recente do G7, de perdoar o débito dos países mais pobres?
Friedman -
Bem, eles não iam receber esse dinheiro de qualquer maneira... Acredito que a ajuda financeira externa mais prejudica um país do que o ajuda. O mundo seria um lugar melhor se o FMI nunca tivesse sido criado, o Banco Mundial não existisse.

Folha - Por quê?
Friedman -
Ao emprestar dinheiro a governos fracos, você os fortalece. E o dinheiro nunca chega aonde deveria chegar. Muitas ditaduras nasceram de empréstimos do FMI ou do Banco Mundial. O ideal é que o dinheiro fosse emprestado pelos países ricos diretamente para as empresas de países pobres, tirando o governo da equação. Se não pagassem, seriam as empresas que entrariam em concordata, não os países.

Folha - O sr. tem defendido idéias pouco ortodoxas ou não-compatíveis com sua biografia...
Friedman -
Sou um defensor do livre-arbítrio. Não sou um anarquista, acredito em governo, um governo mais contido, mas um governo. Acredito no governo tal qual foi pensado pela primeira constituição dos Estados Unidos, de poderes limitados.

Folha - O sr. realmente vê as drogas sendo legalizadas?
Friedman -
No mínimo a maconha. No curso da história humana, nos últimos mil anos, nunca houve uma morte por overdose de maconha. Na comparação, é dez vezes menos viciante que o cigarro e menos que o álcool. Cedo ou tarde isso vai acontecer, como aconteceu com o cigarro e com o álcool, aliás. Eu não vou estar aqui para ver, mas você vai.


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