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LUÍS NASSIF
As divas da canção brasileira
A canção brasileira é monumental. Aquele estilo de
composição lenta, com componentes de folclore, semi-erudito,
entrou em nossa formação por
meio de nossas mães, de suas
mães e da ampla tradição do
canto orfeônico e dos corais brasileiros. E, com essas músicas e
seus autores, vieram as nossas divas, com o sotaque afetado das
líricas suavizado pelos elementos
populares das canções brasileiras. Foram elas que primeiro
eternizaram Villa-Lobos, Jaime
Ovalle, Heckel Tavares, Waldemar Henrique, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, Tom Jobim.
E onde estarão elas e suas vozes? De Maria Lúcia Godoy, se
sabe. Lembro-me da primeira
vez que a ouvi com o Madrigal
Renascentista, lá em Poços de
Caldas, em 1963. Meu pai havia
organizado o 9º Encontro Nacional de Farmácia. Para o encerramento, contratou o Madrigal,
que, sob a regência de Isaac Karabtchevsky, em início de carreira, e tendo Maria Lúcia como solista, conseguira renome mundial.
O coral se apresentou no sábado à noite, no encerramento do
congresso. No domingo até troquei a missa das 9h pela das 11h,
que era comandada pela voz tonitruante do monsenhor Trajano Barroco. A matriz tinha um
coralzinho esforçado. Naquele
dia, na hora dos cânticos, em seu
lugar entrou a voz divina de Maria Lúcia Godoy e do Madrigal.
Os fiéis, eu entre eles, julgamos
que o mundo havia acabado e
que o céu invadira de repente a
matriz.
Maria Lúcia foi o grande nome
que dominou a canção brasileira
desde então. Antes dela, Poços já
havia hospedado a voz poderosa
de Gabrielle Benzanzoni, a
maior soprano dos anos 30, italiana que acabou casada com o
comendador Henrique Lage, armador e construtor do parque
Lage, e passando a lua-de-mel
em Poços. Fora as duas, mais Bidu Sayão, a maior de todas, o
canto lírico brasileiro revelou
inúmeras vozes belíssimas, mas
cuja lembrança permaneceu restrita ao meio artístico.
Por onde andará Maria Aparecida, que seguiu para uma temporada parisiense com Waldemar Henrique e, de repente,
substituiu a deusa Maria Callas?
Recentemente, o imbatível selo
"Revivendo" lançou um CD com
canções interpretadas por Cristina Maristany, uma portuguesa
criada no Brasil, falecida em
1950 e considerada a maior lírica
brasileira, depois de Bidu Sayão,
e maior intérprete de Villa-Lobos.
Recentemente, minha amiga
Consuelo de Paula, uma das
mais belas vozes brasileiras, frequentadora habitual dos saraus
daqui de casa, me trouxe uma
gravação caseira de um LP de
Clara Petraglia, voz belíssima,
interpretando motivos folclóricos no início dos anos 50.
Aluna de violão de Isaias Sávio, Clara chegou a fazer carreira
internacional. A foto da capa
mostra uma moça bonita, de rosto brejeiro, abraçada a um violão. Foi a primeira intérprete de
"Leilão", a obra-prima de Heckel
Tavares e Joracy Camargo ("(...)
E nesse dia minha veia foi comprada/numa leva separada/de
um sinhô mocinho ainda./Minha veinha, era frô dos cativeiro/foi inté mãe do terreiro/da família dos Gambinda"), que eu
conhecia com a voz forte de minha paixão, Inezita Barroso.
Mas, de todas as vozes, de todas as cantoras, nenhuma me
emocionou mais do que a paraense Maria Helena Coelho
Cardoso, que conheci em um CD
gravado pela Secretaria de Cultura do Estado que ganhei de minha amiga Lilian Chaves, poeta
paraense primorosa. Dona Maria Helena surgiu na cena lírica
nos anos 30, interpretando seu
conterrâneo Waldemar Henrique.
Em um depoimento que deu
em 1992 às jornalistas Sônia Zaghetto e Marton Maués, o compositor falava de Maria Helena.
"Uma vez o pianista Waldemar
Navarro me telefonou no Rio de
Janeiro e disse: "Olha, eu estou
ensaiando com Claudia Muzio,
que é considerada a voz mais bela da Europa, mas a voz da Helena é muito mais bonita"."
Maria Helena pegou um ita no
norte, desceu no Rio de Janeiro,
venceu um concurso lírico na década de 30, deslumbrou a crítica
carioca. Depois, recolheu-se em
um casamento estável, retornou
a Belém do Pará. Hoje é nome de
coral local, continuou gravando
a música do Pará, que ainda
conserva o sotaque lindo das
canções brasileiras. Mas deixou
em todos que um dia tiveram a
ventura de a ouvir a certeza de
que, não fosse o casamento, teria
sido uma outra Bidu Sayão.
Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br
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