São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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LUÍS NASSIF

As divas da canção brasileira

A canção brasileira é monumental. Aquele estilo de composição lenta, com componentes de folclore, semi-erudito, entrou em nossa formação por meio de nossas mães, de suas mães e da ampla tradição do canto orfeônico e dos corais brasileiros. E, com essas músicas e seus autores, vieram as nossas divas, com o sotaque afetado das líricas suavizado pelos elementos populares das canções brasileiras. Foram elas que primeiro eternizaram Villa-Lobos, Jaime Ovalle, Heckel Tavares, Waldemar Henrique, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, Tom Jobim.
E onde estarão elas e suas vozes? De Maria Lúcia Godoy, se sabe. Lembro-me da primeira vez que a ouvi com o Madrigal Renascentista, lá em Poços de Caldas, em 1963. Meu pai havia organizado o 9º Encontro Nacional de Farmácia. Para o encerramento, contratou o Madrigal, que, sob a regência de Isaac Karabtchevsky, em início de carreira, e tendo Maria Lúcia como solista, conseguira renome mundial.
O coral se apresentou no sábado à noite, no encerramento do congresso. No domingo até troquei a missa das 9h pela das 11h, que era comandada pela voz tonitruante do monsenhor Trajano Barroco. A matriz tinha um coralzinho esforçado. Naquele dia, na hora dos cânticos, em seu lugar entrou a voz divina de Maria Lúcia Godoy e do Madrigal. Os fiéis, eu entre eles, julgamos que o mundo havia acabado e que o céu invadira de repente a matriz.
Maria Lúcia foi o grande nome que dominou a canção brasileira desde então. Antes dela, Poços já havia hospedado a voz poderosa de Gabrielle Benzanzoni, a maior soprano dos anos 30, italiana que acabou casada com o comendador Henrique Lage, armador e construtor do parque Lage, e passando a lua-de-mel em Poços. Fora as duas, mais Bidu Sayão, a maior de todas, o canto lírico brasileiro revelou inúmeras vozes belíssimas, mas cuja lembrança permaneceu restrita ao meio artístico.
Por onde andará Maria Aparecida, que seguiu para uma temporada parisiense com Waldemar Henrique e, de repente, substituiu a deusa Maria Callas?
Recentemente, o imbatível selo "Revivendo" lançou um CD com canções interpretadas por Cristina Maristany, uma portuguesa criada no Brasil, falecida em 1950 e considerada a maior lírica brasileira, depois de Bidu Sayão, e maior intérprete de Villa-Lobos.
Recentemente, minha amiga Consuelo de Paula, uma das mais belas vozes brasileiras, frequentadora habitual dos saraus daqui de casa, me trouxe uma gravação caseira de um LP de Clara Petraglia, voz belíssima, interpretando motivos folclóricos no início dos anos 50.
Aluna de violão de Isaias Sávio, Clara chegou a fazer carreira internacional. A foto da capa mostra uma moça bonita, de rosto brejeiro, abraçada a um violão. Foi a primeira intérprete de "Leilão", a obra-prima de Heckel Tavares e Joracy Camargo ("(...) E nesse dia minha veia foi comprada/numa leva separada/de um sinhô mocinho ainda./Minha veinha, era frô dos cativeiro/foi inté mãe do terreiro/da família dos Gambinda"), que eu conhecia com a voz forte de minha paixão, Inezita Barroso.
Mas, de todas as vozes, de todas as cantoras, nenhuma me emocionou mais do que a paraense Maria Helena Coelho Cardoso, que conheci em um CD gravado pela Secretaria de Cultura do Estado que ganhei de minha amiga Lilian Chaves, poeta paraense primorosa. Dona Maria Helena surgiu na cena lírica nos anos 30, interpretando seu conterrâneo Waldemar Henrique.
Em um depoimento que deu em 1992 às jornalistas Sônia Zaghetto e Marton Maués, o compositor falava de Maria Helena. "Uma vez o pianista Waldemar Navarro me telefonou no Rio de Janeiro e disse: "Olha, eu estou ensaiando com Claudia Muzio, que é considerada a voz mais bela da Europa, mas a voz da Helena é muito mais bonita"."
Maria Helena pegou um ita no norte, desceu no Rio de Janeiro, venceu um concurso lírico na década de 30, deslumbrou a crítica carioca. Depois, recolheu-se em um casamento estável, retornou a Belém do Pará. Hoje é nome de coral local, continuou gravando a música do Pará, que ainda conserva o sotaque lindo das canções brasileiras. Mas deixou em todos que um dia tiveram a ventura de a ouvir a certeza de que, não fosse o casamento, teria sido uma outra Bidu Sayão.


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