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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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ARTIGO

O frio siberiano atinge a energia da Rússia

FIONA HILL
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

Em uma reunião de outra forma corriqueira entre o presidente russo, Vladimir Putin, o chanceler alemão, Gerhard Schröder, e empresários russos e alemães, na semana passada, na região dos Urais, Putin fez uma admissão notável. Em referência à exigência da União Européia de que a Rússia elevasse seus baixos preços internos de eletricidade e gás, levando-os a patamares mundiais, caso deseje aderir à OMC (Organização Mundial do Comércio), o presidente russo respondeu que "isso é impossível. Poderíamos causar o colapso de toda a economia russa".
A maior parte dos observadores desconsiderou essa declaração, encarada como mais um exemplo de exagero defensivo tipicamente russo. Mas Putin está absolutamente certo. Seria impossível para a Rússia permitir que os preços internos da energia fossem ditados por forças de mercado.
A economia do país depende quase integralmente da provisão de petróleo, gás e eletricidade a baixo custo. E depende também de receitas orçamentárias geradas por vendas de energia no exterior, a preços mais altos, de mercado mundial. Na verdade, a Rússia está aprisionada entre os imperativos de um sistema de duplo preço para a energia.
A energia é a grande questão de política interna e externa para a Rússia. O petróleo e o gás natural respondem por cerca de um quarto do PIB (Produto Interno Bruto) russo, cerca de metade das receitas de exportação do país e mais ou menos um terço da arrecadação tributária do governo.
Cada dólar de aumento no preço mundial do petróleo se traduz em até US$ 1,5 bilhão ao ano em arrecadação adicional para o orçamento federal russo. Excetuadas as armas nucleares, o petróleo e o gás natural são os grandes ativos estratégicos de que dispõe a Rússia. O país conta com a terceira maior reserva mundial de petróleo e ocupa a primeira posição em reservas de gás natural.

Conflitos
Mas, como Putin certamente sabe, existem muitas demandas conflitantes quanto à energia na Rússia. A energia precisa alimentar o desenvolvimento econômico do país, aumentar sua influência no exterior e satisfazer as aspirações das empresas russas a competir com as grandes companhias petrolíferas mundiais. O mais importante é que os recursos naturais russos precisam manter cidades e indústrias funcionando em algumas das regiões mais frias do planeta. Falando francamente, petróleo, gás natural e eletricidade a baixo preço é que mantêm vivos os cidadãos no inverno.
Hoje, ainda há concentrações populacionais e fábricas na Rússia em locais onde os planejadores comunistas as instalaram e não onde o bom senso ou as forças de mercado as teriam estabelecido.
Entre os anos 30 e os anos 80, a União Soviética desafiou a natureza e lançou imensos projetos de industrialização e urbanização na Sibéria. Os custos dessa empreitada agora se tornaram aparentes. O assentamento em massa desse território imenso e rico em recursos naturais, mas frio demais para a vida, significa que há quase 40 milhões de pessoas vivendo e trabalhando em cidades russas nas quais a temperatura média em janeiro varia de 15 a 45 graus negativos. Das cidades com pelo menos 1 milhão de habitantes que são consideradas as mais frias do mundo, as nove primeiras da lista estão localizadas na Rússia.
Nos outros países setentrionais, as pessoas abandonaram as regiões mais frias em troca de climas mais amenos, ao longo da última década, mas os russos continuam congelados no lugar. A migração para a Rússia européia, para regiões mais quentes onde o potencial de crescimento econômico é maior, é reduzida pelas restrições de assentamento em Moscou e pela falta de empregos e de habitação em outras cidades.

Custo alto
A Sibéria é um fardo para a economia russa. O custo de vida lá é quatro vezes mais elevado do que no resto do país, e os custos de produção industrial são ainda mais altos, em termos relativos.
Os residentes das cidades siberianas ganham menos de 8% dos salários obtidos pelos trabalhadores de Moscou. As indústrias locais (excetuados o petróleo e o gás natural) vacilam à beira da bancarrota. A maioria das pessoas e das empresas não consegue sequer pagar as contas de energia.
Mesmo com os baixos preços internos, o governo russo ainda banca os custos do combustível enviado no inverno às regiões mais frias do país, o que consome cerca de US$ 700 milhões ao ano.
Assim, Putin está certo. A desregulamentação dos preços da energia e o aumento do custo dos serviços básicos seriam catastróficos. Na Sibéria, o aquecimento é literalmente uma questão de vida ou morte. Nenhum governo russo permitiria que as empresas de infra-estrutura punissem os inadimplentes cortando-lhes a energia. Na verdade, nem os governos municipais e muitas indústrias conseguem pagar as contas de energia.
Esse estado de coisas não é sustentável. O país não tem condições de subsidiar a Sibéria. O dilema é como reduzir a população das cidades e indústrias siberianas e transferir pessoas e empregos de volta a regiões menos frias. Esse será um desafio ainda maior para a Rússia do que a reforma estrutural da década passada.


Fiona Hill é pesquisadora sênior da Brookings Institution e co-autora, com Clifford Gaddy, de "The Siberian Curse: How Communist Planners Let Russia Out in the Cold" ("A Praga Siberiana: Como os Planejadores Comunistas Colocaram a Rússia Numa Fria"), que será publicado em breve.

Tradução de Paulo Migliacci


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