São Paulo, terça-feira, 20 de março de 2007

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BENJAMIN STEINBRUCH

Sobre maracujina e adrenalina


Passados quatro anos, está claro que a "Carta ao Povo Brasileiro" é cumprida só na parte de acalmar o mercado

O PRATO PRINCIPAL era bacalhau assado ao modo do minho com arroz de mariscos e chanfrana de cabrito. A sobremesa, toucinho do céu. Mas o restaurante não era na região norte de Portugal. Tratava-se da Adega de Leone, casa que serve comida portuguesa em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
A descrição desse almoço, em 2002, está no livro "Sobre Formigas e Cigarras", escrito pelo ex-ministro da Fazenda e atual deputado federal Antonio Palocci Filho e lançado na semana passada. O livro, no capítulo 2, conta que foi nesse almoço, em maio daquele ano, que nasceu a idéia da "Carta ao Povo Brasileiro".
Para quem não se lembra, esse documento já passou para a história como o compromisso que garantiu a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato, por ter ajudado o governo do PT, ainda nem eleito, em 2002, a jogar sua primeira dose de maracujina na economia, na expressão do próprio Antonio Palocci Filho.
Sem nenhuma dúvida, a "Carta ao Povo Brasileiro" teve influência decisiva na campanha eleitoral de 2002. Até 22 de junho daquele ano, quando o presidente Lula assinou e leu solenemente esse documento, temia-se que o governo do PT, uma vez eleito, romperia contratos, daria calote na dívida, acabaria com o controle rigoroso das contas públicas e com o superávit fiscal e abandonaria a política de metas de inflação. Se essa percepção do mercado não fosse cirurgicamente debelada naquele momento, certamente a conjuntura econômica ficaria tão conturbada que poderia até mesmo inviabilizar o pleito.
Por isso, a Carta foi um marco. Ela anunciou explicitamente que o novo modelo proposto pelo PT e seus aliados não seria adotado por atos voluntaristas, e sim a partir de uma ampla negociação democrática e nacional; que a "premissa" da transição política seria o respeito a contratos e obrigações do país; que o superávit primário seria preservado; que o combate à inflação continuaria; e que as contas públicas seriam mantidas sob controle.
Tanto no capítulo 2 do livro de Palocci quanto na memória geral das pessoas, a "Carta ao Povo Brasileiro" é lembrada pelos itens enumerados acima. É lembrada, portanto, pelos seus compromissos mais conservadores, pelas doses e overdoses de maracujina.
Quem se der ao trabalho de reler o texto integral da Carta, no entanto, verá que ela enumera também -e principalmente- compromissos de mudanças, muito mais enfatizados do que os outros. A primeira frase do documento diz "O Brasil quer mudar", e a segunda, "Mudar para crescer, incluir, pacificar".
Ao reafirmar o "compromisso histórico com o combate à inflação", o texto da Carta, assinado pelo presidente Lula, acrescenta que isso deveria vir "acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda".
Apesar do esforço e da boa vontade do presidente, não foi isso o que se viu nos primeiros quatro anos de governo. O crescimento médio anual desse quadriênio foi de 2,6%, praticamente o mesmo verificado no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Na semana passada, surgiu a suspeita de que o Banco Central estaria trabalhando para atingir uma "meta oculta" de inflação, inferior à estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional, de 4,5% tanto para 2006 quanto para este ano. A inflação medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), que fechou o ano passado em 3,14%, bem abaixo da meta oficial, deve atingir 3,8% neste ano, segundo a expectativa do mercado.
O Banco Central obviamente nega a existência dessa "meta oculta", embora os críticos a evoquem para explicar a relutância do Copom (Conselho de Política Monetária) em reduzir as taxas de juros a um ritmo mais rápido.
Passado o primeiro governo do presidente Lula, está claro que a "Carta ao Povo Brasileiro" tem sido cumprida apenas na parte da maracujina, aquela que foi redigida às pressas para acalmar o mercado naquele tenebroso maio de 2002. Eram e são itens importantes. Mas eles teriam de ser complementados com doses de adrenalina, de medidas desenvolvimentistas. E que só agora, com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), parecem começar a sair do papel. A conferir.


BENJAMIN STEINBRUCH , 53, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, presidente do conselho de administração da empresa e primeiro vice-presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

bvictoria@psi.com.br


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