São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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AÇÚCAR AMARGO

Sem respaldo jurídico, setor deixou de recolher, desde 99, percentual destinado a trabalhadores; Estado se omite

Produtor de cana deixa de repassar R$ 1 bi

FÁTIMA FERNANDES
CLAUDIA ROLLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Por omissão do Estado, produtores de cana-de-açúcar deixaram de repassar entre 1999 e 2004 ao menos R$ 1 bilhão destinado legalmente a serviços de assistência médica e a projetos sociais para empregados do setor.
Esse é o montante que não foi pago por produtores paulistas de cana com base nas safras colhidas nesse período, incluindo multas. Ainda não há cálculos sobre o quanto deixou de ser recolhido em outras regiões onde há produção de cana no país.
Desde 1965, produtores de cana, de açúcar e de álcool são obrigados (pela Lei 4.870) a recolher 1%, 1% e 2%, respectivamente, sobre o comércio desses produtos para custear a assistência médica e social dos trabalhadores do setor.
Em 1999, os produtores de cana se reuniram e decidiram sustar o pagamento sob a alegação de que o tabelamento do preço do produto havia acabado.
Para eles, como o preço oficial da cana deixou de existir com a desregulamentação do setor, também teria perdido a vigência a obrigação legal de investir na assistência aos trabalhadores.
A interrupção do pagamento é polêmica por três motivos: 1) os produtores não pediram respaldo judicial para suspender o recolhimento -tomaram a decisão por conta própria; 2) o governo não reagiu, não fiscalizou nem questionou o argumento extrajudicial usado pelos plantadores. O Ministério da Agricultura, responsável pela política do setor, só se manifestou após o Ministério Público Estadual e a Defende, ONG formada por um grupo de advogados, decidirem intervir judicialmente; 3) ao menos uma entidade de produtores -a Associação de Fornecedores de Cana de Piracicaba, que reúne 4.800 fornecedores- continua pagando, por achar que a taxa ainda é devida.
Com relação aos produtores de açúcar e de álcool, não há informações de o repasse previsto na lei estar ou não sendo feito.
Até o final desta semana, a Defende, responsável pelos cálculos do montante devido, vai entrar com ações na Justiça para cobrar esse dinheiro de 20 associações de fornecedores de cana. O Ministério Público em Ribeirão Preto também prepara uma ação civil pública para manter o repasse.
Pela lei, as associações de fornecedores são as responsáveis pelo recolhimento e pelo repasse do dinheiro para hospitais, ambulatórios e programas educacionais.
Em março, a ONG moveu uma ação contra a Associação dos Fornecedores de Cana de Guariba (Socicana) e mais oito usinas da região. Quer reinstituir o recolhimento da taxa e determinar o pagamento dos atrasados.
A ONG não obteve liminar nessa ação -que está em andamento-, mas o Ministério Público em Guariba opinou a favor do repasse. "Se está na lei, tem de ser cumprido", afirma o promotor Fernando Cezar Burghetti.
A Socicana, uma das 20 associações que não recolhe a taxa, representa 800 plantadores de cana da região. Entre seus associados está Paulo de Araújo Rodrigues, filho do ministro Roberto Rodrigues (Agricultura). Ele ocupa o cargo de vice-presidente da Socicana. Procurado pela Folha, Araújo Rodrigues não foi localizado. Recados foram deixados em seu celular e em sua residência.
Em 2001, o Ministério Público Estadual em Guariba já havia entrado com ação na Justiça contra a Socicana para defender o recolhimento. Mas a Justiça considerou que a associação era parte ilegítima - não poderia responder nesse processo no lugar das usinas e dos plantadores de cana.
Inicialmente, o Ministério da Agricultura era responsável pelo cumprimento da lei. Após a extinção do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), que ocorreu em 1990, o setor ficou sob a responsabilidade do Ministério da Fazenda.
Logo após o fim do tabelamento do preço da cana, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional emitiu um parecer no qual citava que a aplicação da lei estava com "eficácia contida" -a lei está vigente, mas necessita de regulamentação.
Depois da Fazenda, o setor ficou sob controle do Ministério da Indústria. Desde 99, passou para a Agricultura. "Nossa posição é que, se houver decisão final da Justiça de que a lei está em vigor e que temos de fiscalizar, vamos tomar as providências para que isso seja feito", diz Ângelo Bressan Filho, diretor do Departamento do Açúcar e do Álcool do ministério.


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