São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O poder americano depois de 1970

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A ruptura do padrão dólar fixo, a derrota no Vietnã e as crises do petróleo balançaram os pilares do poder norte-americano. A maioria dos analistas continuou a proclamar a derrota definitiva da hegemonia americana, mesmo depois de 1985, quando a crise já tinha sido superada e os Estados Unidos avançavam na direção de um poder global.
A política externa dos EUA, depois da movida diplomática de Nixon (Kissinger) em relação à China, tinha deixado de se concentrar nos conflitos Leste-Oeste, congelados pela distensão da Guerra Fria, e deslocado seu foco para o Oriente Médio. Tratava-se de resolver simultaneamente a geopolítica da área e a geoeconomia do petróleo, ambas em grande período de turbulência. O condomínio americano-saudita-iraniano reafirmado pelo acordo de Teerã de 1971 durou pouco graças à instabilidade do sistema monetário internacional e aos conflitos crescentes nos países árabes, que se agravaram com a derrubada do xá do Irã.
A instabilidade do dólar só foi contornada depois da "diplomacia do dólar forte" do governo Reagan (Volker), seguida pelos acordos Plaza-Louvre de 1985, em que os norte-americanos, apoiados pelos europeus, impingiram uma valorização considerável ao iene. Este se tornou a "moeda de ajuste" às flutuações do "dólar flexível", dadas as enormes reservas japonesas em dólar. No mercado de petróleo, o ajuste foi passado em última instância para a Arábia Saudita, o país com as maiores reservas petrolíferas do mundo, encarregado de expandir ou contrair a produção de acordo com a expansão da demanda e as flutuações de preços.
Assim, nos dois "mercados flexíveis", o dólar e o petróleo, os EUA deixaram de arcar internamente com o ônus da desregulação, que caracterizou o período de transição 1973/85 e passaram a uma economia de comando, na qual a política norte-americana faz unilateralmente as intervenções preventivas ou corretivas, segundo a conjuntura. Sem regras gerais auto-aplicáveis e sem consideração pelas regras dos organismos internacionais que eles mesmos ajudaram a criar, os norte-americanos, com seu intervencionismo preventivo, expandiram como nunca o seu poder global.
Do ponto de vista militar, a estratégia da intervenção preventiva prosperou. No caso do Oriente Médio, os EUA não esperaram para substituir a velha "gerdarmerie" colonial, como ocorreu no caso do Vietnã. Intervieram em todos os conflitos, fizeram tratados unilaterais com o Egito e com Israel, apoiaram primeiro o xá do Irã e, quando este foi derrubado pela Revolução Islâmica, em 1979, armaram o Iraque na longa guerra que se seguiu, apoiando Saddam Hussein, que viriam a derrubar duas décadas depois. A Arábia Saudita manteve-se até hoje como o único aliado fiel dos EUA, depois das mudanças sucessivas de alianças e dos conflitos nos demais países árabes.
A velha Inglaterra -que conseguira depois da guerra de 1914 garantir a sua política de protetorados e de árbitro dos conflitos do Oriente Médio- foi empurrada para fora do comando pela superpotência americana e retirou-se "voluntariamente" por ter achado petróleo mais barato no mar do Norte. Suas pretensões "arbitrais" na área estavam definitivamente minadas desde a crise do canal de Suez e requeriam a passagem do bastão para os EUA. Só voltou como personagem auxiliar na segunda Guerra do Iraque, no começo deste século.
Dentro da mesma lógica, apesar da implosão da URSS, as antigas bases, instaladas após a Segunda Guerra Mundial, mantiveram-se dentro da União Européia e expandiram-se para o Leste Europeu. As bases mais recentes estão localizadas em países possuidores de petróleo ou nas atuais fronteiras russas e chinesas da Ásia Menor (ver Chalmers Johnson, 2004).
A gestão interna do intervencionismo preventivo tornou-se mais complexa com a reafirmação da hegemonia norte-americana. Evidentemente, as divergências de política econômica entre a Secretaria do Tesouro e o Fed (o banco central dos EUA) são facilmente contornáveis quando se tem à disposição uma política fiscal e monetária elástica, e quando nenhum dos seus dirigentes pensa em contrariar os interesses dos grandes bancos americanos e da "comunidade financeira internacional", já consolidados em Wall Street depois de 1985. O mesmo não se pode dizer do petróleo e das armas. Afinal, o Texas não coordena adequadamente o mercado mundial de petróleo e, muito menos, as políticas setoriais e globais do complexo militar norte-americano.
O fato de que as bases militares no exterior respondem, em suas tarefas múltiplas, a comandos das Forças Armadas e da espionagem norte-americanas não unificados internamente perturba e distorce, muitas vezes, as informações disponíveis no Pentágono e no resto dos órgãos de segurança. Isso agrava as disputas entre a Secretaria de Defesa e o Departamento de Estado, que vêm se acentuando desde o governo Reagan. Não existe, na verdade, um comando unificado da Segurança Nacional norte-americana (como se viu por ocasião do desastre de 11 de setembro) e talvez a razão disso seja o fato de a "doutrina de segurança" e as agências de inteligência se terem espalhado a todos os escalões do governo desde que o poder nacional se confundiu com o poder global.
O cruzamento dos grandes interesses corporativos e militares que atravessam a geografia mundial, em particular a do petróleo, tornam os "dissensos de Washington" sobre decisões da política externa norte-americana um verdadeiro quebra-cabeças. O aumento desmedido do poder global dos EUA nas últimas décadas é incompatível com a noção de ordem internacional por sua inerente instabilidade estrutural. A dinâmica da "globalização financeira" comandada pelo dólar não admite um padrão estável nem coincide espacialmente com a expansão do poder militar. Esta é movida por outra lógica que não aceita nenhum movimento de "equilíbrio" ou coordenação dos demais poderes nacionais.


Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail -
mctavares@abordo.com.br


Texto Anterior: Opinião Econômica - Rubens Ricupero: Mensagem ao nosso povo
Próximo Texto: Panorâmica - Acordo: BC e Fazenda enviam carta ao FMI
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.