São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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EUA se preparam para a 2ª dose recessiva

Cresce o número de especialistas que prevêem que economia americana vá se contrair ou se desacelerar até o fim do ano

Mercados financeiro e de habitação e aumento do preço do petróleo e dos alimentos ainda preocupam principal economia mundial


KRISHNA GUHA
DO "FINANCIAL TIMES"

Para Janet Yellen, presidente da divisão regional de San Francisco do Federal Reserve (banco central dos EUA), as forças que começaram a ameaçar a economia americana cerca de um ano atrás eram "um pouco como a abertura de "Macbeth", com as três horrendas bruxas conjurando problemas em meio a trovões e relâmpagos". Ela acrescenta: "Mas, aqui, as três bruxas encrenqueiras eram o setor da habitação, os mercados financeiros e os preços das commodities". Passado quase um ano, as três bruxas continuam à solta. As Bolsas ainda enfrentam tumulto, e o destino da economia dos EUA está uma vez mais na balança. O crescimento deste trimestre parece destinado a exibir algum vigor. Mas o risco de recuo para um ritmo muito fraco ou até mesmo a uma recessão se ampliou. A dinâmica central que envolve aperto de crédito, fraqueza do setor financeiro e enfraquecimento da economia se alimentando mutuamente se intensificou nas últimas semanas, em parte devido ao choque do petróleo. Mas o perigo de que a inflação alta se torne um componente do cenário econômico americano também se intensificou, com o aumento nos preços da energia elevando o índice de inflação ao consumidor a 5%, em termos anualizados. A mais recente grande intervenção das autoridades americanas -o plano de resgate às empresas de crédito hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac- garantiu às gigantes do setor o acesso a fundos e, com ele, o financiamento continuado ao combalido setor da habitação. Gerou, porém, pouca reação imediata nos mercados financeiros mais amplos. Economistas e investidores igualmente estão imaginando em que ponto da crise de crédito estamos: se no intervalo da partida ou se já chegamos aos 30 minutos do segundo tempo, para usar a terminologia do futebol. Por algum tempo, parecia que o regate ao Bear Stearns, em março, havia marcado o ponto de inflexão na crise de crédito. Agora se tornou claro que, embora aquele tenha mesmo sido um ponto de inflexão, não representou o ponto em que a crise seria superada. Há poucos motivos para imaginar que a intervenção na Freddie Mac e na Fannie Mae representará esse ponto. As dívidas de Fannie Mae e Freddie Mac sempre contaram com garantia implícita do governo. Seu resgate fechou uma avenida para o desastre financeiro e econômico. No entanto, não melhorou muito a situação de outros grupos financeiros. Por um lado, depois de um começo hesitante de ano, a economia dos EUA se provou notavelmente resistente ao longo do segundo trimestre e no início do terceiro. Os EUA continuaram a se beneficiar do crescimento global, com as exportações oferecendo apoio essencial à atividade. Mas o gasto dos consumidores também se sustentou muito melhor do que muita gente no Fed esperava. Por outro lado, a economia está em crescente perigo de nova deterioração mais tarde no ano. As forças em ação são as mesmas três "bruxas" que ameaçam desde o início da crise. Embora tenham existido vislumbres ocasionais de esperança nas três frentes, em termos gerais as forças negativas se intensificaram nos dois últimos meses. Como resultado, número crescente de economistas passou a prever uma desaceleração "em forma de W", e alguns chegam a estimar contração econômica efetiva, mais ou menos pela virada do ano. A depender de como os economistas venham a classificar o período de fraqueza do começo deste ano, o fim de 2008 pode enfim marcar o momento em que os EUA cairão em recessão ou voltarão a ela. "Acredito que haja chance superior a 50% de que passemos por uma recessão de duplo mergulho", diz Richard Berner, economista-chefe do Morgan Stanley. No coração da ameaça ao crescimento está a retomada de uma dinâmica básica da crise de crédito: um ciclo de retroalimentação negativa entre o setor financeiro danificado e a economia real, e vice-versa. A situação é agravada pelo declínio nos preços de casas e ações.

Bancos
Surpreendentemente, os bancos ainda não foram capazes de determinar a dimensão completa de seus prejuízos com novos e complexos instrumentos de crédito. Agora eles estão sofrendo uma segunda rodada de prejuízos causados tanto pela alta nos índices de inadimplência quanto por uma ampla gama de empréstimos, à medida que os devedores sofrem o desgaste causado pela fraqueza da economia. Não há nada de incomum nessas perdas, que são parte de um ciclo de crédito à moda antiga. O problema é que os bancos estejam ingressando nessa fase com seu capital já severamente abalado por prejuízos anteriores. Muitos analistas estão preocupados com a possibilidade de uma onda de falências bancárias. Mesmo que ela não aconteça, bancos incapazes ou indispostos a levantar capital caro podem ter de cortar ainda mais os seus empréstimos, intensificando a compressão de crédito na economia. "Em muitos casos, os bancos ou estão reduzindo endividamento, ou cortando empréstimos, ou relutam em levantar o capital adicional necessário para tirar vantagem das oportunidades de negócios disponíveis", disse Ben Bernanke, presidente do Fed, na semana passada. As dificuldades do setor financeiro estão estreitamente relacionadas à incerteza quanto às perspectivas econômicas e, acima de tudo, às expectativas do setor de habitação. Os preços das casas têm poderoso efeito sobre o consumo, por meio de seu impacto sobre o patrimônio e o acesso ao crédito. Eles também afetam as instituições financeiras ao influenciar o nível de inadimplência em hipotecas e o valor dos títulos lastreados por elas. Segundo o índice da S&P Case-Shiller para dez cidades, os preços das casas estão 19% abaixo de seu pico e, com base nos mercados futuros, devem cair ao todo 30% antes de chegar ao fundo. Como observaram dirigentes do Fed, de acordo com a ata da reunião de junho, as perspectivas para a habitação continuam "sombrias". "A deflação nos preços dos ativos de habitação torna muito difícil estabilizar os balanços do sistema financeiro e também acentua os ventos contrários que a economia real está enfrentando", diz Mohamed El-Erian, co-presidente-executivo da administradora de fundos de investimento Pimco.

Gastos dos consumidores
Sobreposto à compressão de crédito está um choque adicional do petróleo, que pode se provar o fator decisivo para causar uma recessão. A maioria das análises se concentra no efeito do petróleo sobre a inflação. Mas o salto nos preços do petróleo também devorou o avanço nominal dos salários, o que não deixou crescimento na renda real dos trabalhadores para sustentar o consumo. Com a pressão advinda da compressão de crédito, habitação, petróleo e a atenuação do mercado de trabalho, o que espanta é que a economia dos EUA tenha conseguido exibir tamanha resistência, até o momento. O crescimento no primeiro trimestre foi de 1%. Para o segundo trimestre, o índice pode ficar entre 2% e 2,5%. Uma grande parte da força exibida no primeiro semestre certamente se deve às exportações líquidas. Mas os gastos dos consumidores continuaram a crescer, em parte como resultado dos US$ 110 bilhões em impostos restituídos aos contribuintes a partir de maio. Essas restituições parecem ter exercido forte impacto imediato sobre os gastos, elevando o crescimento do consumo. Mas é um estímulo temporário e desaparecerá no segundo semestre. Ao mesmo tempo, os EUA enfrentam um sério risco de inflação. A taxa anualizada de 5% em junho dificilmente representa um pico. Em resumo, ela é gerada externamente, impulsionada por preços recordes de petróleo e alimentos. Mas, quanto mais tempo ela persistir, maior será o risco de que venha a se incorporar aos preços internos. E alguns indicadores de expectativas inflacionárias já estão piscando alertas. Há claramente a possibilidade de que a economia, depois de se provar mais forte do que a maioria dos economistas esperava no primeiro semestre, consiga sustentar o ímpeto nos seis meses finais do ano. Crescimento persistente poderia, além disso, indicar que os EUA são menos vulneráveis do que geralmente se imagina a deslocamentos do mercado financeiro. Caso isso proceda, o crescimento rapidamente retornará a níveis normais ou ainda mais altos, alimentado por taxas de juros reais muito baixas e pela estabilização esperada nas construções residenciais, especialmente se as pressões financeiras se aliviarem de novo. Isso poderia reduzir rapidamente a capacidade ociosa hoje modesta na economia do país -o desemprego está em apenas 5,5%- e agravar seriamente o risco de que inflação alta termine incorporada no comportamento que determina a formação de preços e salários no país. Mesmo que o crescimento não se prove superior ao esperado, existe ainda algum risco de que as expectativas de inflação possam decolar, a despeito da fraqueza da economia. De fato, os trabalhadores talvez possam não exigir aumentos nos salários reais, mas compensação plena pela elevação dos preços, como nos anos 1970. Se o Fed cometer erros em seus cálculos, os EUA poderão ter um sério problema de inflação em suas mãos. Mas, caso respondam apropriadamente ao risco de inflação, o resultado será amplificar o de crescimento. No mínimo, a menos que o petróleo subitamente despenque ou a economia caía em uma cratera, o melhor que o Fed poderá fazer será o dia em que terá de começar a elevar os juros. Além disso, se as expectativas inflacionárias se agravarem ainda mais, o Fed terá que abandonar esses esforços de equilibrismo e elevar os juros, a despeito das conseqüências sobre o crescimento.

Governo
Embora as autoridades econômicas tenham se provado capazes de moderar o impacto da crise financeira e de bloquear determinados percursos rumo ao armagedon econômico, não conseguiram alterar a dinâmica subjacente. Com a política monetária distendida devido à ameaça de inflação, qualquer futura resposta oficial teria de surgir da autoridade fiscal: o governo dos EUA. Henry Paulson, secretário do Tesouro, assumiu a postura de que o governo deveria, caso necessário, intervir a fim de garantir a estabilidade do sistema, mas permitir que empresas, instituições e domicílios individuais resolvam sozinhos os seus problemas. O governo Bush argumenta que os mercados se estabilizarão naturalmente, se não houver interferência, à medida que os preços caiam a ponto de começar a atrair novos compradores. E isso pode estar correto. A recuperação nas ações financeiras na semana passada demonstra que, a certos preços, os investidores estão dispostos a assumir riscos. Em dado estágio, os preços das casas atingirão um ponto de equilíbrio no qual os compradores retornariam e promoveriam balanço mais firme entre oferta e procura. E então, se não antes, a crise de crédito terá acabado. Mas El-Erian diz que "pode haver múltiplos pontos instáveis de equilíbrio" para os preços das casas, o setor financeiro e a economia em geral. Em outras palavras, poderia haver um "bom equilíbrio" -preços mais altos para as casas, bancos em recuperação, uma economia mais forte- e um "mau equilíbrio" -preços mais baixos para as casas, bancos em crise e economia fraca. E também desfechos intermediários. Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro, deseja um segundo pacote de estímulo fiscal a fim de sustentar a economia enquanto o setor da habitação se ajusta, o que reduziria o risco de colapso no mercado de trabalho e com ele queda ainda maior nos preços das casas. Martin Feldstein, professor da Universidade Harvard, diz que "a chave é remover o incentivo para que as pessoas deixem de pagar suas hipotecas quando o valor da dívida supera o do imóvel, porque isso derrubará ainda mais os preços das casas". Quer os intervencionistas estejam certos, quer não, caso a temida fraqueza econômica se materialize, o próximo presidente dos EUA poderá assumir em circunstâncias muito difíceis. As ambições quanto a política externa, cortes de impostos e reforma doméstica poderiam ter de ocupar segundo plano ante a necessidade de descobrir como revitalizar a economia.

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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