São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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ARTIGO/"J'ACCUSE"

Um desafio para quem prega a moratória

Bobby Yip -19.set.01/Reuters
George Soros, para quem há chance de o Brasil quebrar


Pelo exposto na primeira parte deste artigo, o mercado doméstico não pode realmente forçar o governo a realizar uma indesejada reestruturação da dívida, exceto no caso extremamente improvável de uma corrida contra os bancos. O máximo que o mercado pode fazer, no caso de se recusar a comprar quaisquer novos títulos ou a rolar os existentes, é acumular a dívida no curtíssimo prazo, na verdade no overnight.
No final das contas, o fato de a dívida ser liquidada efetivamente em moeda nacional abre a porta para que o Banco Central crie dinheiro para pagar a dívida e, em seguida, enxugue o excesso de liquidez através da sua carteira de mercado aberto, na prática convertendo em overnight a dívida que vence.
Além disso, existem poucos motivos para ter a expectativa de que o mercado doméstico se recuse a comprar algum título do governo. Um punhado de bancos (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Bradesco, Itaú, Unibanco, Nossa Caixa, HSBC e Santander, para citar os maiores) são os principais detentores da dívida, o que melhora consideravelmente a possibilidade de coordenação. Além disso, os dois maiores detentores de títulos do governo são precisamente os bancos federais (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal).
Os problemas de rolagem da dívida acontecem em relação à parcela da dívida atrelada ao dólar, ao passo que a dívida denominada em reais tem sofrido muito menos dificuldade. Também, as possibilidades de coordenação entre o governo e os bancos nacionais tornam bem remota a hipótese de uma recusa de rolagem da dívida. Finalmente, mesmo no caso pouco provável de surgirem problemas generalizados de rolagem, sempre há o último recurso de pagar a dívida com emissão de moeda, neutralizada em seguida através de colocação de instrumentos da dívida no overnight.
Portanto, considerando a dívida interna, não está clara a maneira pela qual os mercados poderiam forçar o governo a fazer uma reestruturação. Investidores estrangeiros não detêm uma posição significativa em títulos da dívida interna, e os detentores domésticos de títulos públicos ficam sujeitos às restrições citadas.

JURO, DÓLAR E SOLVÊNCIA
Não há contestação quanto ao fato de que a dívida interna aumentou rapidamente no Brasil. De dezembro de 1998 até agosto de 2002, a dívida aumentou de 42,3% do PIB para 58,3% do PIB, provocando temores de que sua trajetória poderia ser insustentável. Mas devo dizer que dificilmente é esse o caso. A alta do índice dívida/PIB não se deveu a um superávit primário insuficiente.
À primeira vista, parece que o superávit primário não tem sido suficiente para impedir a expansão da dívida, pois é inferior ao componente de juros puros (isto é, sem o efeito da depreciação da moeda sobre a dívida). Mas nada poderia estar mais distante da verdade, pois devem-se considerar também os efeitos da inflação e do crescimento real do PIB.
A dinâmica pura da dívida, isto é, a resultante da interação dos superávits primários, taxas de juros nominais e crescimento nominal do PIB (5), na verdade, teria levado a uma pequena redução no índice dívida/PIB, de 42,3% do PIB em dezembro de 1998 para 40,7% em agosto de 2002.
Conclui-se que o aumento na dívida se deve principalmente à acentuada depreciação da taxa de câmbio observada entre dezembro de 1998 e agosto de 2002, a qual acrescentou ao índice dívida/PIB um valor equivalente a 17,2% do PIB. Mas note-se que aqui não tratamos da depreciação nominal da moeda, mas só da parcela da depreciação nominal que excedeu [ " a expansão nominal do PIB no período. Sucede que a depreciação nominal da moeda atingiu quase 150% no período, ao passo que o crescimento nominal do PIB atingiu apenas 48%, o que significa uma depreciação real beirando os 70%, desde 1998.
Nessa altura, percebe-se por que mantive a taxa de câmbio real fora da definição de dinâmica pura da dívida. A taxa de câmbio real não parece se comportar como variável que continua aumentando ou diminuindo "ad infinitum". Na verdade, há bons motivos para suspeitar que essa variável tende a reverter para sua média, o que implica, é claro, o fato de que não tem a capacidade de gerar, por si só, uma dinâmica explosiva na dívida. Ademais, no caso específico do Brasil, dado o patamar muito depreciado da moeda, simplesmente não seria razoável ter expectativas de desvalorização adicional da taxa de câmbio real, pelo menos não da magnitude que temos visto recentemente.
Portanto, não se deve ter a expectativa de que o índice dívida/ PIB cresça indefinidamente devido à desvalorização real da taxa de câmbio. Um exemplo. O balanço de pagamentos do setor privado em 2003 deverá necessitar de algo em torno de US$ 14,5 bi de financiamentos externos para atender a suas necessidades, bem menores que em 2001, graças à expansão do superávit comercial devida à fraqueza da taxa de câmbio real.
As previsões da balança comercial, que são a base da redução no déficit em transações correntes do setor privado (6) de US$ 6,9 bilhões neste ano para cerca de US$ 2 bilhões em 2003, resultam da premissa de uma taxa de câmbio real constante de R$ 3 hoje. Se a taxa de câmbio real permanecer no nível atual (R$ 3,9), o saldo de transações correntes do setor privado poderia facilmente se transformar num superávit em 2003.
Esse é um resultado que poderia impedir a depreciação adicional da taxa de câmbio real e acabaria desencadeando um movimento de reversão à média. Com base nisso, pode-se descartar os riscos de uma trajetória explosiva para a dívida puxada somente pela taxa de câmbio real. Após chegar a essa conclusão, voltamos ao argumento de que os mercados poderiam forçar o país a implementar uma moratória indesejada por meio do canal cambial.
Conforme apresentei o argumento, uma recusa de adquirir títulos da dívida brasileira ou de rolar a dívida existente forçaria a taxa de câmbio para cima e aumentaria a dívida para além do limite de solvência.
Todavia, já chegamos à conclusão de que somente uma depreciação real (ao contrário de nominal) da moeda poderia aumentar o índice dívida/PIB. Além disso, o forte ajuste no balanço de pagamentos que vem ocorrendo em 2002, acelerando-se no segundo semestre, indica que há limites para a taxa de câmbio real, limites esses que devem estar bem próximos neste momento. Em suma, até mesmo esse canal mais sofisticado não parece ser suficiente para provocar uma reestruturação forçada da dívida.
Mas, de alguma forma, escapa à análise de muitos o simples fato de que somente a depreciação da moeda acima do crescimento nominal do PIB importa para o índice dívida/PIB. Tais analistas chegam então à conclusão errônea de que o câmbio por si só é suficiente para empurrar a dívida para além do limite de solvência.

OLHANDO PARA A FRENTE
Se podemos deixar o comportamento da taxa de câmbio real fora do quadro, tratando do desempenho da dívida em relação ao PIB num horizonte mais longo, a questão da solvência volta àquilo que chamei de dinâmica pura da dívida: à interação entre as taxas de juros reais, o crescimento do PIB e os superávits primários.
Deixe-me começar dando uma olhada nas taxas de juros. Com a vantagem de ter realizado quase 70 reuniões com investidores estrangeiros, pude averiguar que a maioria deles não sabe qual é o nível médio das taxas de juros reais no Brasil. A média das respostas a essa pergunta colocaria as taxas de juros reais no entorno de 13% a 15% ao ano. Mas a taxa Selic, deflacionada pela inflação observada (IPCA) (7), atingiu uma média de 9,6% ao ano nos últimos 24 meses, ao passo que o custo efetivo da dívida, medido pela razão de juros puros por 12 meses sobre o estoque de dívida, apresenta a média de cerca de 8% ao ano durante o mesmo período.
Usando o número de 60% do PIB para o índice dívida/PIB (8) podemos calcular qual seria o superávit primário necessário para estabilizar a dívida no nível atual, estando implícita a premissa de que a taxa de câmbio real não se deprecie (nem se valorize) mais. Isso, é claro, depende das nossas expectativas para as taxas de juros reais e para o crescimento do PIB.
Nos níveis históricos para as taxas de juros reais e números baixos de crescimento do PIB, não é difícil concluir que superávits primários em torno das metas atuais ainda estão aptos a cumprir a tarefa. Observe-se, novamente, que isso parte de níveis do índice dívida/PIB que consideram a recente desvalorização da moeda.
Note-se, ainda, que, ao contrário do que acontece na maioria dos países, o custo médio da dívida no Brasil é em grande parte determinado pelo governo. É notório que uma grande parcela da dívida doméstica (cerca de 56%) é indexada às taxas de juros overnight. Além disso, há uma parcela considerável (uns 8% adicionais da dívida) que é prefixada, porém com vencimento (e prazo) médio de pouco mais de três meses.
Em outras palavras, o governo brasileiro, por meio do Banco Central, pode reduzir o custo de sua dívida, se quiser, sendo que o obstáculo para isso é essencialmente a meta de inflação. As implicações desse fato são dramáticas: enquanto um governo que contraiu alguma dívida a uma dada taxa precisa reestruturar sua dívida se necessita de um custo mais baixo (veja o exemplo da Argentina em 2001), tudo o que o governo brasileiro precisa fazer é reduzir a taxa Selic. Embora a taxa Selic não seja exatamente o mesmo que o custo médio da dívida, essa taxa é um dos principais fatores determinantes desse custo.
Novamente, esse é um fato bem conhecido. Na verdade, sempre que o Banco Central eleva a taxa Selic, os sábios se apressam em avisar que isso ameaça a estabilidade da dívida. Por motivos que ainda ignoro, no entanto, a possibilidade de um movimento de queda parece escapar à atenção dos mesmos analistas.
Em suma, os custos da dívida são muito mais baixos do que muitos presumem, mesmo aqueles que acompanham o país bem de perto. Em segundo lugar, ao contrário do que Soros parece ter deixado subentendido nas suas declarações recentes, o custo médio da dívida não depende do nível de spreads soberanos, mas sim da taxa Selic determinada pelo governo. Terceiro, enquanto a diferença entre as taxas de juros reais e o crescimento do PIB permanecer em torno de 6% a 7% ao ano, um superávit primário entre 3% e 4% do PIB pode estabilizar o índice dívida/PIB, mesmo partindo de níveis de dívida calculados à taxa de câmbio atual (extremamente subvalorizada).
Isto posto, a idéia de que não há maneira de evitar uma reestruturação para solucionar a questão da dívida no Brasil parece não encontrar apoio nem nos dados e nem na lógica elementar.

CONCLUSÃO: "J'ACCUSE!"
Neste ensaio (extenso, desculpe-me!), percorremos um caminho bastante longo para examinar a possibilidade de que uma reestruturação da dívida seja praticamente um fato certo no Brasil, isto é, algo que ocorreria independentemente da vontade do governo, imposto pelo funcionamento de um mercado que decidiu não adquirir ou manter ativos brasileiros. A argumentação apresentada por aqueles que acreditam nessa história se baseia, aparentemente, nos eventos que ocorreram na Argentina, onde a mesma recusa acabou sufocando o governo, deixando-o sem alternativa senão (primeiro) tentar uma reestruturação ordenada, que por fim terminou numa inadimplência total e caótica.
No entanto, os passos intermediários entre a crise de confiança e a inadimplência na dívida, que foram razoavelmente claros na Argentina, não parecem estar presentes no Brasil. Naquele país, a crise de confiança e o consequente aumento nos spreads soberanos levaram a uma forte contração da atividade econômica e à deflação, uma vez que o ajuste da taxa de câmbio real tinha que ocorrer por meio de deflação doméstica. Isso, além de fomentar a inquietação social, prejudicou muito a arrecadação de impostos, pois o PIB contraiu-se, levando a uma péssima dinâmica de dívida. Por sua vez, isso exigiu uma redução do custo médio da dívida, que somente poderia resultar de uma reestruturação, conforme Cavallo tentou no final de 2001.
Todavia, a corrida contra os bancos, financiada em grande parte pelas reservas do governo (uma característica central de um regime cambial de taxas fixas), atrapalhou essa tentativa e obrigou o governo a restringir as retiradas dos bancos. O resto é história: o "corralito" provocou uma grande crise política, que foi o começo do fim.
Isto posto, desafio e dobro o desafio a qualquer um que defenda a idéia de que o mercado possa impor a inadimplência ao governo brasileiro: que apresente uma cadeia de eventos semelhante (um mecanismo de transmissão, se preferir) entre a crise de confiança e a inadimplência da dívida no Brasil. Para começar, pode se demonstrar que o mesmo choque de spreads mais altos, que num país de taxas de câmbio fixas produz uma recessão, tem efeitos positivos em países que adotam taxas flutuantes -por meio de exportações líquidas maiores. O PIB nominal está crescendo no Brasil em vez de diminuir, o que se reflete na dinâmica da dívida que discutimos anteriormente.
Além disso, como mostramos acima, o governo pode viver sem os mercados internacionais de capital até pelo menos o final de 2003 (possivelmente mais), contanto que não desperdice reservas tentando defender a moeda.
Com relação à dívida interna, além do fato que o governo enfrenta problemas muito menos complicados em termos de coordenação, o simples fato é que a dívida é paga em moeda nacional, independentemente do índice que se use para ajustar a dívida.
Dessa forma, além do dinheiro atualmente guardado pelo Tesouro Nacional (R$ 120 bilhões no final de agosto), o BC pode, em última instância, simplesmente emitir moeda para pagar a dívida. Para impedir que a emissão de moeda alimente a inflação, o BC teria de esterilizar esses recursos por meio de operações no mercado aberto, trocando títulos do governo por dinheiro, na verdade rolando a dívida diariamente.
Como foi mencionado anteriormente, isto envolve problemas, já que implicaria possivelmente uma taxa inflacionária mais alta do que verificamos hoje. Uma inflação mais alta também pode resultar no caso de o governo ter de reduzir as taxas de juros por motivos de sustentabilidade da dívida (isto é, no caso do próximo governo não cumprir com as metas fiscais). Isto posto, não é muito difícil concluir que os custos de uma inflação mais alta (digamos, 10% a 15%) sejam bem mais baixos do que os que surgiriam de uma reestruturação da dívida.
Para verificar esse fato, considere o que aconteceu em 1990, quando uma malfadada tentativa de controle da inflação, o Plano Collor, congelou os depósitos bancários, reduzindo unilateralmente o rendimento e alongando o vencimento da dívida interna. Naquela época, o Brasil passou pela pior recessão dos últimos 20 anos (comparável somente à que se verificou em 1981, neste último caso causada por uma grande reversão do fluxo de capital), da qual levou mais dois anos para se recuperar.
Em contraste, qualquer estimativa razoável dos custos da inflação indica que, para os níveis aqui discutidos, eles dificilmente ultrapassam alguns pontos-base no PIB, deixando de lado (reconheço) possíveis efeitos negativos na distribuição de renda. Isso posto, parece-me que a alternativa de inflação mais alta se sobrepõe à alternativa de reestruturar a dívida interna (a manutenção do superávit primário parece sobrepor-se às alternativas anteriores).
Em suma, acuso os sábios que prevêem, ou recomendam, uma reestruturação da dívida interna de ter construído sua argumentação sobre uma analogia sem validade, sem se dar ao trabalho de pensar a fundo sobre como a crise de confiança possa se concretizar numa moratória da dívida. Acuso-os ainda de esquecer que, no Brasil, uma redução da taxa Selic, totalmente controlada pelo governo, pode reduzir o custo médio da dívida sem a necessidade de sua reestruturação. Também os acuso de ignorar que a taxa de câmbio sozinha não pode determinar indefinidamente o índice dívida/PIB.
Além disso, reitero meu desafio para que demonstrem um mecanismo de transmissão plausível, da crise de confiança para uma moratória da dívida. Sem isto, declarar que a moratória seja inevitável equivale a dizer que haverá uma moratória porque "eu acredito que seja inevitável".

Alexandre Schwartsman é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), e economista-chefe da BBA Corretora.

5. Como alternativa, poderíamos usar taxas de juros reais e crescimento real do PIB. Obviamente, isto não implica nenhuma diferença na análise
6. Para calcular o déficit total em transações correntes, é necessário somar a esse valor os pagamentos líquidos de juros do setor público, isto é, os pagamentos relativos à dívida soberana, mais os pagamentos ao FMI, deduzidos os juros acumulados sobre as reservas internacionais. Fazendo esse cálculo, chega-se a US$ 12,2 bilhões em 2002 e US$ 8 bilhões em 2003.
7. Note-se que o IPCA resultaria no menor número de inflação dentre os índices de preços nacionais (os outros sendo o INPC, o IGP-DI e o IGP-M), e portanto a medida mais alta das taxas de juros reais.
8. Este chega a 64% do PIB no cálculo tradicional, uma vez que eu excluí a base monetária do valor no texto, já que não há nenhum rendimento de juros sobre a oferta de moeda. Em outras palavras, estou avaliando a dívida atrelada ao US$ à taxa de câmbio de R$ 3,80/US$.
9. Adotou-se uma premissa de inflação de 7% ao ano, mas valores mais altos reduziriam o superávit primário necessário suficiente para nos convencer que a taxa Selic é um dos principais fatores determinantes desse custo.


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