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LUÍS NASSIF
Sei lá pra quê
A primeira vez que ouvi Sidnei
Miller foi tão marcante que, curiosamente, todos os detalhes ficaram
registrados na minha memória,
mesmo os mais insignificantes. Estava na casa do meu amigo Francha e seus irmãos, um sobrado antigo de Poços de Caldas, na rua
Santa Catarina, onde (soube depois) meu avô paterno e filhos moraram logo que chegaram da Argentina, lá pelos idos dos 20.
O Francha tinha uma velha rádio de ondas curtas, de rabo quente, que pegava uma emissora de
Buenos Aires e chamara a turma
para testemunhar o feito. Enquanto corria o dial, procurando a
emissora portenha, passou por
uma rádio brasileira. Os poucos
segundos de melodia que captamos bastou para que eu pedisse
para deixar a música terminar.
Parecia uma melodia provinda
das profundezas do tempo, que
passara por bisavós, avós e mães e,
agora, docemente, pedia licença
para entrar. Era "Menina da Agulha". "Que menina é aquela / que
vem de tão longe, tão longe / tão
triste e pensativa ela vem de longe". A conversa parou e ficamos ali
embevecidos, esperando a música
terminar para saber o nome do autor e intérprete. Era um tal de Sidnei Miller, do qual nunca ouvíramos falar.
Ali mesmo separei parte da mesada, que gastaria à noite no pimbolim, para comprar o LP de Sidnei Miller. Levou algumas semanas até que chegasse em "A Musical", única loja de discos da cidade. Durante meses, nossas namoradas levaram uma overdose de
"Menina da Agulha", "Maria Joana", "Maria" e por ali vai, 12 músicas impecáveis, secundando letras
que lembravam a doçura de Casimiro de Abreu.
Sidnei Miller tornou-se tema
preferencial de nossas conversas
musicais. Fazia algum tempo que
Chico Buarque tinha estourado
com "A Banda". Em plena efervescência dos festivais de música, a
imprensa bem que tentou criar
uma disputa entre ambos, mas
não colou, porque eram muito inteligentes e tímidos para embarcar
na onda.
Comparações musicais não passam de bobagens, diziam os membros mais intelectualizadas do
nosso grupo. Mas a maioria acreditava piamente que "O Circo", de
Sidnei Miller ("Vai, vai, vai, começar a brincadeira / tem charanga
tocando a noite inteira / vem, vem,
vem, ver o circo de verdade / tem,
tem, tem, picadeiro e qualidade"),
era superior a "A Banda", de Chico, embora a gente tivesse certeza
de que Sidnei tomara emprestado
de "Olê Olá", do Chico, aquele jeito de ir subindo os acordes, um a
um, que nem escadinha, que era o
encanto de todos nós, aprendizes
de músico.
Em pouco tempo, Sidnei Miller
tornou-se estrela de primeira
grandeza dos festivais, ao lado de
Chico, Gil, Caetano, Edu, Vandré e
Paulinho da Viola. E todos seus
lançamentos eram aguardados,
por todo o interior e também por
Poços, para imediata incorporação ao repertório das serenatas.
Acho que nas artes, assim como
na vida, tem um negócio chamado
"estrela". Tem gente com "estrela",
tem gente sem. Embora os dois fossem tímidos, músicos de primeira,
letristas dos maiores e não perseguissem o sucesso fácil, Chico tinha "estrela", Sidnei não.
Quando veio a grande noite da
ditadura, Chico reagiu com declarações e com sátiras, Sidnei com
músicas soturnas. Chico passou a
incursionar pelo teatro, com "Roda Viva" (arghh, com todo respeito), que a gente vinha ver em São
Paulo, de ônibus de excursão, pagava ingresso, era xingado pelos
atores durante toda a peça, e voltava elogiando, pois eu não era
besta de chegar em Poços e admitir
que varara a noite viajando para
ser xingado -e ainda por cima
pagar por isso. Mas dava ibope para Chico, enquanto Sidnei se recolhia à sua timidez.
Não lembro de discos lançados
por ele nos anos 70 e 80, das músicas, sim. Já em São Paulo, "Pois é,
pra quê" (acho que o nome era outro), com o MPB4, tornou-se o hino
máximo contra a ditadura em todas as rodas universitárias da época. Anos depois, Clara Nunes estourou com uma música bonita
que falava de tamborins e cavaquinhos. Mas o autor continuava
no limbo, ignorado pela crítica e
pela mídia.
Acho que foi na primeira metade
dos anos 80 que se deu a tragédia.
Estávamos no "Vou Vivendo", um
bar musical de São Paulo, quando
apareceu Eduardo Gudin, esbaforido. Tinha acabado de chegar do
Rio, do funeral de Sidnei Miller.
Com voz baixa, de quem comete
uma inconfidência, disse que Miller tinha se matado. Os jornais deram notas pequenas sobre a morte
dele, sem entrar em detalhes.
Tempos ainda de autocensura e
de teorias conspiratórias, alguns
atribuíram sua morte à depressão
permanente que lhe tinha sido imposta pela ditadura. Outros, à perda de um cargo na Funarte. Tenho
cá para mim que Sidnei foi morto
não pela ditadura, mas pela falta
de memória nacional.
Desde então, as lembranças de
Sidnei Miller são transportadas
pelo tempo por meio de pequenas
rodas musicais, pelo clube pequeno e seleto de fãs, que guardou
suas melodias. Seu primeiro LP jamais saiu em CD. Os amigos músicos do Rio dizem que a viúva sumiu com os filhos nas dobras do
tempo, como uma "Menina da
Agulha" que foi para tão longe, levando lembranças e músicas inéditas.
Mas até hoje, em qualquer roda
caseira, basta um músico sacar da
algibeira uma composição de Sidnei Miller para estabelecer imediata cumplicidade com os demais
que a conhecem. Basta uma troca
de olhares, coisa de maçom, de
guerrilheiro, sei lá, desses que
identificam na hora as afinidades,
como se um falasse para o outro
"você é dos nossos". E uma emoção
profunda, inexplicável, toma conta do ambiente, como se a tristeza
ancestral de Sidnei baixasse na sala, sei lá pra quê.
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