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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma nova abolição
RUBENS RICUPERO
"É possível que, renunciando à
igualdade de tratamento (...), alguns se resignem a assinar convenções, em que sejam declaradas
e se confessem nações de terceira,
quarta ou quinta ordem. O Brasil
não pode ser desse número."
Não sei se por ter enviado esse
telegrama a Rui Barbosa, em
Haia, o barão do Rio Branco mereceria dos editorialistas o epíteto
de neonacionalista. Ele certamente compreendia que soberania e
moeda são inseparáveis e que não
era por nada que na velha Inglaterra se chamava a moeda de "sovereign".
Quem sabe os mestres modernos
do falso "saber superficial, tendencioso e pretensioso", para usar
expressão de um velho polemista
católico, também considerem a
soberania fora de moda, da mesma forma que a moeda própria.
Se assim for, o país mais anacrônico do mundo são os Estados
Unidos, sem comparação o mais
apegado à visão ferrenha e estrita
da soberania. Se não, vejamos: é
talvez o único país no qual parcela considerável do Congresso olha
com desconfiança a ONU por temer que ela se queira converter
em governo mundial. É das raras
nações que não são ainda parte de
alguns dos mais importantes tratados internacionais do nosso
tempo, como a Convenção dos Direitos da Criança, do Direito do
Mar, da Biodiversidade, do tratado contra as minas antipessoais,
sobre a Corte Penal Internacional, em todos os casos por contrariar interesses soberanos americanos.
Apesar de paladinos do comércio mundial, os EUA nunca aceitaram renunciar ao unilateralismo de suas diversas leis 301, por
questão de soberania, assim como
jamais permitiram que passassem
a controle estrangeiro companhias importantes para a segurança nacional, no campo da aeronáutica, eletrônica, ótica etc.
Na Alemanha, o chanceler
Schroeder, quando era primeiro-ministro da Baixa Saxônia, nacionalizou (há menos de dois
anos) uma grande empresa siderúrgica do seu Estado, a fim de
impedir que ela fosse comprada
pela Voest austríaca, pondo, assim, em perigo certo número de
empregos. Como se sabe, não há
registro de nenhuma operação estrangeira de aquisição hostil de
empresa alemã pela simples razão
de que as normas germânicas não
o permitem.
O Japão é o caso extremo de economia de envergadura mundial
com baixíssimo grau de abertura
a capitais externos e só agora começa parcimoniosamente a permitir algumas aquisições por estrangeiros.
O Reino Unido não aderiu ao
euro porque a população continua apaixonadamente fiel à libra
e à independência.
Os suíços derrotaram em "referendum" a adesão à União Européia porque se apegam a suas liberdades tradicionais, à originalíssima democracia semidireta e
não querem entregar seus destinos aos burocratas de Bruxelas.
A França perdeu a conta das vezes em que o governo interveio
para evitar que empresas francesas passassem a controle estrangeiro, chegando ao ponto de que,
no último episódio, o ministro da
Economia vetou a venda da laranjada Orangina à Coca-Cola!
Não obstante a crise asiática, a
Coréia não permitiu o desmantelamento dos seus gigantescos conglomerados, os "chaebols", apesar
da pressão do FMI, nem a Tailândia e muito menos a Malásia admitiram a desnacionalização do
setor bancário.
Não preciso nem falar de qual é
a atitude nessa matéria da China,
exemplo mais bem-sucedido de
crescimento, nem da Índia.
A não ser, portanto, que se considere o Brasil e a América Latina
como a vanguarda da civilização
e o prenúncio dos radiosos tempos
futuros, o panorama internacional da soberania em geral e da soberania econômica em particular
é muito mais complexo e matizado do que o sonhado pela globalização pueril e ingênua. Pois, como conclui Aldo Ferrer, justamente em sua "Historia de la Globalización", a constante histórica
desde 1500 até hoje é que não existe caso de nenhum país que haja
alcançado altos níveis de desenvolvimento a não ser a partir de
processos autocentrados (ênfase
minha) de transformação, mudança técnica e acumulação de capital,
ou seja, de processos fundamentados na soberania.
Não se trata de reabrir oposições
superadas entre nacionalismo, velho ou novo, e a inserção positiva
na economia internacional. O que
faz falta nesse debate é a dose saudável de pragmatismo que levou
os asiáticos a resistir com firmeza e
modificar em parte as receitas
mais perniciosas do FMI. Nenhum
desses asiáticos pragmáticos cogita dolarização ou "currency
board", não por ideologia, mas por
saber que para isso teriam de renunciar à possibilidade de ter política monetária própria e que, em
momentos de crise e, na verdade,
em qualquer momento, um governo necessita mais, e não menos flexibilidade. Alguns como a Malásia
adotaram controles temporários
de câmbio que evitaram o pior da
recessão. Todos buscaram sempre
atrair capitais estrangeiros, direcionando-os, porém, a setores nos
quais vão gerar capacidade adicional de exportação, mas evitando a excessiva desnacionalização
de áreas críticas nas quais convém
manter no país o centro decisório.
Em outras palavras, para tais
países soberania é questão de realismo e bom senso, é afirmar a capacidade de pensar com a própria
cabeça e de ter idéias inovadoras, é
ser livre para escolher de acordo
com os valores e interesses nacionais e não de Wall Street, do Tesouro americano ou do FMI. Em
nosso caso, o primeiro desses valores-metas é completar a integração das parcelas marginalizadas e
vulneráveis do povo brasileiro a
um mercado e uma sociedade
equilibrados e prósperos. Subordinar essa prioridade absoluta a
qualquer ingerência de fora é perder a autonomia de decisões, é
uma forma de nos escravizarmos a
nós mesmos. Angenor de Oliveira,
o inesquecível mestre Cartola, já
nos ensinava que, diante disso, seria necessária uma nova abolição.
E, se nos convidassem a trilhar a
estrada da servidão, tenho a certeza de que o povo brasileiro gritará
com Cartola: "Não vou, não quero!".
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos domingos nesta coluna.
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