São Paulo, Domingo, 21 de Fevereiro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma nova abolição

RUBENS RICUPERO
"É possível que, renunciando à igualdade de tratamento (...), alguns se resignem a assinar convenções, em que sejam declaradas e se confessem nações de terceira, quarta ou quinta ordem. O Brasil não pode ser desse número."
Não sei se por ter enviado esse telegrama a Rui Barbosa, em Haia, o barão do Rio Branco mereceria dos editorialistas o epíteto de neonacionalista. Ele certamente compreendia que soberania e moeda são inseparáveis e que não era por nada que na velha Inglaterra se chamava a moeda de "sovereign".
Quem sabe os mestres modernos do falso "saber superficial, tendencioso e pretensioso", para usar expressão de um velho polemista católico, também considerem a soberania fora de moda, da mesma forma que a moeda própria.
Se assim for, o país mais anacrônico do mundo são os Estados Unidos, sem comparação o mais apegado à visão ferrenha e estrita da soberania. Se não, vejamos: é talvez o único país no qual parcela considerável do Congresso olha com desconfiança a ONU por temer que ela se queira converter em governo mundial. É das raras nações que não são ainda parte de alguns dos mais importantes tratados internacionais do nosso tempo, como a Convenção dos Direitos da Criança, do Direito do Mar, da Biodiversidade, do tratado contra as minas antipessoais, sobre a Corte Penal Internacional, em todos os casos por contrariar interesses soberanos americanos.
Apesar de paladinos do comércio mundial, os EUA nunca aceitaram renunciar ao unilateralismo de suas diversas leis 301, por questão de soberania, assim como jamais permitiram que passassem a controle estrangeiro companhias importantes para a segurança nacional, no campo da aeronáutica, eletrônica, ótica etc.
Na Alemanha, o chanceler Schroeder, quando era primeiro-ministro da Baixa Saxônia, nacionalizou (há menos de dois anos) uma grande empresa siderúrgica do seu Estado, a fim de impedir que ela fosse comprada pela Voest austríaca, pondo, assim, em perigo certo número de empregos. Como se sabe, não há registro de nenhuma operação estrangeira de aquisição hostil de empresa alemã pela simples razão de que as normas germânicas não o permitem.
O Japão é o caso extremo de economia de envergadura mundial com baixíssimo grau de abertura a capitais externos e só agora começa parcimoniosamente a permitir algumas aquisições por estrangeiros.
O Reino Unido não aderiu ao euro porque a população continua apaixonadamente fiel à libra e à independência.
Os suíços derrotaram em "referendum" a adesão à União Européia porque se apegam a suas liberdades tradicionais, à originalíssima democracia semidireta e não querem entregar seus destinos aos burocratas de Bruxelas.
A França perdeu a conta das vezes em que o governo interveio para evitar que empresas francesas passassem a controle estrangeiro, chegando ao ponto de que, no último episódio, o ministro da Economia vetou a venda da laranjada Orangina à Coca-Cola!
Não obstante a crise asiática, a Coréia não permitiu o desmantelamento dos seus gigantescos conglomerados, os "chaebols", apesar da pressão do FMI, nem a Tailândia e muito menos a Malásia admitiram a desnacionalização do setor bancário.
Não preciso nem falar de qual é a atitude nessa matéria da China, exemplo mais bem-sucedido de crescimento, nem da Índia.
A não ser, portanto, que se considere o Brasil e a América Latina como a vanguarda da civilização e o prenúncio dos radiosos tempos futuros, o panorama internacional da soberania em geral e da soberania econômica em particular é muito mais complexo e matizado do que o sonhado pela globalização pueril e ingênua. Pois, como conclui Aldo Ferrer, justamente em sua "Historia de la Globalización", a constante histórica desde 1500 até hoje é que não existe caso de nenhum país que haja alcançado altos níveis de desenvolvimento a não ser a partir de processos autocentrados (ênfase minha) de transformação, mudança técnica e acumulação de capital, ou seja, de processos fundamentados na soberania.
Não se trata de reabrir oposições superadas entre nacionalismo, velho ou novo, e a inserção positiva na economia internacional. O que faz falta nesse debate é a dose saudável de pragmatismo que levou os asiáticos a resistir com firmeza e modificar em parte as receitas mais perniciosas do FMI. Nenhum desses asiáticos pragmáticos cogita dolarização ou "currency board", não por ideologia, mas por saber que para isso teriam de renunciar à possibilidade de ter política monetária própria e que, em momentos de crise e, na verdade, em qualquer momento, um governo necessita mais, e não menos flexibilidade. Alguns como a Malásia adotaram controles temporários de câmbio que evitaram o pior da recessão. Todos buscaram sempre atrair capitais estrangeiros, direcionando-os, porém, a setores nos quais vão gerar capacidade adicional de exportação, mas evitando a excessiva desnacionalização de áreas críticas nas quais convém manter no país o centro decisório.
Em outras palavras, para tais países soberania é questão de realismo e bom senso, é afirmar a capacidade de pensar com a própria cabeça e de ter idéias inovadoras, é ser livre para escolher de acordo com os valores e interesses nacionais e não de Wall Street, do Tesouro americano ou do FMI. Em nosso caso, o primeiro desses valores-metas é completar a integração das parcelas marginalizadas e vulneráveis do povo brasileiro a um mercado e uma sociedade equilibrados e prósperos. Subordinar essa prioridade absoluta a qualquer ingerência de fora é perder a autonomia de decisões, é uma forma de nos escravizarmos a nós mesmos. Angenor de Oliveira, o inesquecível mestre Cartola, já nos ensinava que, diante disso, seria necessária uma nova abolição. E, se nos convidassem a trilhar a estrada da servidão, tenho a certeza de que o povo brasileiro gritará com Cartola: "Não vou, não quero!".


Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos domingos nesta coluna.


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