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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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LUÍS NASSIF

Os fãs mirins de Maria Rita

A Beatriz tem cinco anos e meio e descobriu Maria Rita meio por acaso. Quando a mãe chegou com o CD em casa, pediu para ouvir. A música começou a tocar e Bibi ficou literalmente hipnotizada. Cada faixa era repetida dez, 15 vezes, até o lado italiano da mãe berrar: "Beatriz, vira o disco!". E aí eram mais 15 repetições da faixa seguinte.
Durante uma semana, Bibi só queria saber sobre Maria Rita. Decorou todas as músicas, perguntou de sua vida, soube que ela perdeu a mãe ainda criança, ficou impressionada, perguntou sobre quem a tinha criado e surpreendeu-se ao saber que tinha sido o próprio pai: "Mas ele sabe fazer direitinho, não faz rolo?", numa óbvia alusão à falta de jeito do seu pai.
Até preparou um bilhetinho para Maria Rita, que escreveu da sua própria cabeça e punho, com uma letrinha redonda e regras de pontuação que aprendeu com a mãe. "Oi, sou a Beatriz. Gosto muito de você, tenho seu CD e seu DVD, fico o dia inteiro escutando as suas músicas. Já sei cantar todas as suas músicas. Você é muito linda. Eu te amo muito!!! Eu tenho 5 anos."
É curioso esse processo que junta ídolos e fãs mirins. Beatriz, assim como Dorinha e Clarinha, adoram Rouge e Sandy e Júnior. Mas adoram Maria Rita também. Na idade delas, eu passava horas na rede de casa, ouvindo Dilú Melo cantar "Fiz a Cama na Varanda". E porque Dilú? Lá sei eu. Poucos sabem hoje em dia quem foi ela, uma cantora maranhense que eu achava que era gaúcha. Mas sua voz me hipnotizava, me fazia sonhar acordado.

Cantores infantis
Na minha infância, ainda não haviam se disseminado os cantores infantis ou feitos para crianças. Havia dois espanhóis, Mirasol e Joselito, intragáveis até para meus ouvidos infantis e o disco do "Marcelino, Pão e Vinho", interpretado por Pablito Calvo.
Hoje em dia, cantora infantil é mais abundante que cantor de churrascaria. Mesmo assim, Maria Rita conseguiu cativar Bibi, Dodó e Cacá. E os pais das três.
Sua mãe, Elis Regina foi a referência musical máxima da minha adolescência, não apenas a cantora excepcional, com sua extraordinária espontaneidade nos primeiros anos de carreira, mas a líder musical inconteste de uma geração que tinha Chico Buarque, Caetano Velloso, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Gilberto Gil.
Nos últimos anos de vida, porém, Elis se transformara. Tornara-se pesada, às vezes excessivamente técnica, às vezes excessivamente dramática. Como Robert Fischer no xadrez, e Muhammad Ali no boxe, parece que se convertera em escrava do mito. Tinha medo de errar, de decepcionar, de comprometer o mito.
Pouco antes de morrer, lembro-me de um programa de televisão em que Elis fazia um contracanto com Gal Costa. A baiana estava linda, no auge, a voz camaleônica ainda não se estratificara nesse timbre metálico que a aprisionou nos últimos anos e do qual há de se libertar, se Deus nasceu na Bahia. Mas Elis era Elis. E, no entanto, estava inibida, presa, temerosa de colocar em risco o mito Elis.
Mas essa Maria Rita... Admito que não assisti nenhum show ao vivo. Tentei inúmeras vezes no Supremo, antes de ela se tornar estrela, e nos shows posteriores, depois que estrelou. Tudo lotado. Quem assistiu, se deslumbrou. A mesma espontaneidade inicial da mãe, e uma simpatia contagiante de menina de bem com a vida. Talvez Maria Rita tenha herdado o talento de palco e a interpretação da mãe, o refinamento e o estilo tranquilo e a calma madura do pai César Camargo Mariano, que libertou o piano brasileiro do formato de trio jazzístico que o tinha aprisionado no final dos anos 60.
O que sei é que está começando no nível que sua mãe atingiu no seu apogeu. E a emoção que pegou de pronto todos os da minha geração que a assistiram na televisão, não foi apenas pelo renascimento da técnica.
A morte de Elis foi uma derrota para todos nós. A maneira como foi politicamente explorada por algumas revistas ligadas ao regime militar, machucou muita gente. De certa forma, Maria Rita é o resgate, a revanche da minha geração, e o encantamento da geração de Bibi.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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