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COMENTÁRIO
Impasse criado na origem
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
O IMPASSE na CTNBio
(Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança) perdura por oito anos
porque resulta de um vício de
origem: já pelo seu próprio nome, o colegiado foi constituído
para ser "técnico" antes de ser
"nacional". Ou seja, para circunscrever decisões sobre um
tema política e ideologicamente carregado -os transgênicos- ao controle daqueles que
são por vocação favoráveis à
transformação genética de organismos. Esqueceram-se de
combinar com os russos, quer
dizer, com aqueles que se acreditam representantes dos interesses difusos na sociedade.
O que principiou como um
erro tático -subestimar a capacidade de obstrução por ONGs
e procuradores com convicções
ambientalistas- revelou-se
um equívoco de conseqüências
estratégicas. Desde a primeira
liberação comercial de um organismo transgênico, em setembro de 1998, a soja resistente a herbicida da Monsanto, os
arautos do progresso tentam
retomar o controle perdido,
sem sucesso. Primeiro, na Justiça. Depois, no Congresso.
Agora voltam à carga, num final melancólico de legislatura,
contrabandeando para dentro
de uma medida provisória duas
iniciativas polêmicas: a legalização de algodão transgênico
ilegalmente cultivado, por não
contar ainda com licenciamento da própria CTNBio (repetindo a política do fato consumado
posta em prática com a soja
modificada), e a redução do
quórum para aprovar liberações comerciais de organismos
transgênicos (para não falar da
inclusão, no voto transgênico
do deputado Paulo Pimenta, de
item sobre descanso remunerado de comerciários...).
A legalização do algodão ilegal nem merece comentário: é a
velha tradição de premiar
quem comete ilícitos, como o
perdão de dívidas tributárias, a
permissão para que assassinos
confessos e condenados por júri popular aguardem julgamento de recursos em liberdade etc.
O quórum qualificado, por sua
vez, tem só 13 meses de vida
(está no artigo 19 do decreto nš
5.591, de 22/11/2005).
Os defensores dos transgênicos alegam que uma minoria de
apenas quatro membros da comissão (os indicados pelos ministérios do Meio Ambiente e
do Desenvolvimento Agrário,
decerto) detém efetivo poder
de veto sobre as liberações comerciais. Não é um argumento
inteiramente honesto, porque
no caso da vacina veterinária
não aprovada foi a sua facção
que não conseguiu reunir os 18
votos necessários. Estiveram
presentes à votação somente 21
dos 27 integrantes da CTNBio
(15 dos quais indicados pelo governo federal). Diante da dificuldade, mesmo tendo maioria
na comissão, querem agora
mudar a regra. Nada de novo.
Regras podem e devem ser
mudadas, eventualmente. O
impasse continuado é prejudicial para o país, mas apenas
porque tem conduzido à irresolução. Parte dela decorre, contudo, da incapacidade de defensores a priori de transgênicos
de aceitar que, numa democracia, certas tecnologias percebidas como ameaçadoras podem
terminar temporária ou definitivamente recusadas. Sua única
arma contra isso é informação,
não golpes de autoridade.
Outra parte, decerto, vem da
incapacidade do lado oposto de
abandonar a prevenção um
tanto ideológica contra a transgenia. A soja, por exemplo, não
conta com parentes silvestres
no Brasil (ao contrário do algodão) nem condições fisiológicas de contaminar lavouras
convencionais ou "orgânicas"
por meio de pólen (como ocorre com o milho).
Cada transgênico é um organismo diverso, que passa a produzir substâncias diferentes
umas das outras, dependendo
da modificação genética realizada. Precisam ser ponderadas
caso a caso. Aceitar participar
de uma comissão legalmente
constituída para avaliar riscos
de biossegurança de transgênicos só para obstruí-los não ajuda ninguém a formar reputação
de coerência científica.
Esse impasse não desaparece
com a nova mudança. Só começará a ser resolvido de fato
quando entidades como a
SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a
ABC (Academia Brasileira de
Ciências) entrarem em campo.
Cabe a elas reunir um grupo de
autoridades reconhecidas pelos fundamentalistas de ambos
os lados como especialistas
isentos, se ainda existirem, para auditar os procedimentos da
comissão impugnados pelos
obstrucionistas. No teatro da
CTNBio, só há lugar para o
mesmo enredo tragicômico encenado desde 1998.
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