São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COMENTÁRIO

Impasse criado na origem

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

O IMPASSE na CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) perdura por oito anos porque resulta de um vício de origem: já pelo seu próprio nome, o colegiado foi constituído para ser "técnico" antes de ser "nacional". Ou seja, para circunscrever decisões sobre um tema política e ideologicamente carregado -os transgênicos- ao controle daqueles que são por vocação favoráveis à transformação genética de organismos. Esqueceram-se de combinar com os russos, quer dizer, com aqueles que se acreditam representantes dos interesses difusos na sociedade.
O que principiou como um erro tático -subestimar a capacidade de obstrução por ONGs e procuradores com convicções ambientalistas- revelou-se um equívoco de conseqüências estratégicas. Desde a primeira liberação comercial de um organismo transgênico, em setembro de 1998, a soja resistente a herbicida da Monsanto, os arautos do progresso tentam retomar o controle perdido, sem sucesso. Primeiro, na Justiça. Depois, no Congresso.
Agora voltam à carga, num final melancólico de legislatura, contrabandeando para dentro de uma medida provisória duas iniciativas polêmicas: a legalização de algodão transgênico ilegalmente cultivado, por não contar ainda com licenciamento da própria CTNBio (repetindo a política do fato consumado posta em prática com a soja modificada), e a redução do quórum para aprovar liberações comerciais de organismos transgênicos (para não falar da inclusão, no voto transgênico do deputado Paulo Pimenta, de item sobre descanso remunerado de comerciários...).
A legalização do algodão ilegal nem merece comentário: é a velha tradição de premiar quem comete ilícitos, como o perdão de dívidas tributárias, a permissão para que assassinos confessos e condenados por júri popular aguardem julgamento de recursos em liberdade etc. O quórum qualificado, por sua vez, tem só 13 meses de vida (está no artigo 19 do decreto nš 5.591, de 22/11/2005).
Os defensores dos transgênicos alegam que uma minoria de apenas quatro membros da comissão (os indicados pelos ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, decerto) detém efetivo poder de veto sobre as liberações comerciais. Não é um argumento inteiramente honesto, porque no caso da vacina veterinária não aprovada foi a sua facção que não conseguiu reunir os 18 votos necessários. Estiveram presentes à votação somente 21 dos 27 integrantes da CTNBio (15 dos quais indicados pelo governo federal). Diante da dificuldade, mesmo tendo maioria na comissão, querem agora mudar a regra. Nada de novo.
Regras podem e devem ser mudadas, eventualmente. O impasse continuado é prejudicial para o país, mas apenas porque tem conduzido à irresolução. Parte dela decorre, contudo, da incapacidade de defensores a priori de transgênicos de aceitar que, numa democracia, certas tecnologias percebidas como ameaçadoras podem terminar temporária ou definitivamente recusadas. Sua única arma contra isso é informação, não golpes de autoridade.
Outra parte, decerto, vem da incapacidade do lado oposto de abandonar a prevenção um tanto ideológica contra a transgenia. A soja, por exemplo, não conta com parentes silvestres no Brasil (ao contrário do algodão) nem condições fisiológicas de contaminar lavouras convencionais ou "orgânicas" por meio de pólen (como ocorre com o milho).
Cada transgênico é um organismo diverso, que passa a produzir substâncias diferentes umas das outras, dependendo da modificação genética realizada. Precisam ser ponderadas caso a caso. Aceitar participar de uma comissão legalmente constituída para avaliar riscos de biossegurança de transgênicos só para obstruí-los não ajuda ninguém a formar reputação de coerência científica.
Esse impasse não desaparece com a nova mudança. Só começará a ser resolvido de fato quando entidades como a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a ABC (Academia Brasileira de Ciências) entrarem em campo. Cabe a elas reunir um grupo de autoridades reconhecidas pelos fundamentalistas de ambos os lados como especialistas isentos, se ainda existirem, para auditar os procedimentos da comissão impugnados pelos obstrucionistas. No teatro da CTNBio, só há lugar para o mesmo enredo tragicômico encenado desde 1998.


Texto Anterior: Câmara facilita aprovação de transgênico
Próximo Texto: Dólar recua 0,19%, e Bolsa de SP perde 0,20%
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.