São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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MERCADO NO DIVÃ

Para psicanalistas, o desafio de quem afundou com a crise é reingressar no mundo das relações humanas sem tratá-las como commodities

Com prejuízos milionários na Bolsa e contratos cancelados, grandes investidores e empresários recorrem à psicanálise para amenizar a angústia de serem "ex-donos do mundo"

PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL

A crise financeira deitou no divã. Angustiado, o grande investidor, ex-"dono do mundo", empenha-se em administrar a quebradeira pessoal pensando pela primeira vez em algo que não seja dinheiro. Seu psicanalista, que gosta de tratar o pagamento da sessão como um assunto simbólico, acha difícil interpretar alguém com tão parcos recursos emocionais.
"Tenho um paciente que perdeu mais de U$ 1 milhão na Bolsa. Está prostrado. Na verdade, apesar de ter família, ele já vinha vivendo uma vida solitária fazia tempo. O envolvimento dele é com o dinheiro e ponto. Agora que perdeu muito, é como se não tivesse nada. Não sobrou assunto", explica o coordenador do ambulatório de transtornos do impulso do Instituto de Psiquiatria da USP, Cristiano Nabuco.
O terapeuta tenta apelar para os supostos laços afetivo-familiares de seu analisando, mas ouve reações irritadas: "Que esposa, porra?"
Segundo Nabuco, a frenética busca financeira já é o sintoma de uma estrutura pessoal falida. "O maior problema do grande investidor é justamente aquilo que ele considera a solução: ganhar dinheiro. Afinal, se ele desempenha tão bem esse papel, o que vai mal?"
Para tentar diminuir os efeitos da crise, o especulador tenta se convencer de que não perdeu nada, uma vez que não tinha nada ("Era tudo papel").
"Hoje atendi um senhor de 53 anos, engenheiro, que fez muitas obras importantes em São Paulo e que, de repente, com a crise, teve vários contratos cancelados. O dinheiro da construtora estava todo aplicado na Bolsa, um negócio que batia 70 mil pontos e passou a bater 39 mil."
Mesmo assim, o engenheiro diz a si mesmo que não está menos rico. "De fato, enquanto ele não vender os papéis, eles estão lá. Mas a gente sabe que, a curto prazo, dificilmente a Bolsa vai bater 70 mil pontos de novo", afirma Nabuco.

Questionar o quê?
No entender do psicanalista Jorge Forbes, o grande desafio em relação a esse analisando é fazê-lo se questionar.
"Em sua bem-sucedida relação com o dinheiro, o mega investidor se considera uma espécie de "dono do mundo" -e tende a desprezar a humanidade. Então, ainda que freqüente o consultório do analista, dificilmente faz análise. Não há questões em uma pessoa que não tem dúvidas", explica.
Forbes diz que os "donos-do-mundo" costumam se isolar em grupos compostos por "iguais", capazes de entender apenas a necessidade de fazer dinheiro.
"Eles não existem por outra razão. O jovem milionário que fez fortuna em um banco de investimentos, por exemplo, tem um valor social muito limitado. As pessoas não o respeitam por criar alguma coisa, curar, advogar ou escrever. Ele até compra cultura, como obras de arte, mas não reflete sobre ela."
Com base em sua clínica, Forbes afirma que o investidor, mesmo quebrado, "não é de usar remédio". Ele resolve com ginástica, toma vitamina.
"A crise financeira está fora desses especuladores. Em momento algum eles se responsabilizam por ela ou são penalizados. Porque se alguma sanção for imposta a essas criaturas "fazedoras de dinheiro" vai haver uma quebradeira pior ainda no mercado."
Ok, em casos muito extremos, se houver algo que realmente fuja ao controle, o financista toma um anti-depressivo. "Afinal, para tudo precisa haver um remédio comprável, palpável, tomável", diz Forbes, que tem ouvido comentários sobre "soluções genéticas".
"O que eles mais querem é comprar a decodificação do DNA. Vai custar U$ 1.000, dizem. Aí, sim, acontecerá uma sucessão de orgasmos jubilatórios. Vai dar pra previnir doenças, programar a felicidade e até agendá-la."

Prótese no psiquismo
Em sua experiência, o presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Plínio Montagna -e Forbes também-, identifica os pacientes investidores com Sherman McCoy, o personagem principal do romance "A Fogueira das Vaidades", do jornalista americano Tom Wolfe.
McCoy vive para ganhar muito e gastar tudo, com ítens que lhe conferem status: mora em um apartamentaço na rua mais valorizada de Manhatan, esbanja cartões de créditos, tem uma mulher adequada, uma amante emblemática, e seus filhos estudam em escolas particulares caras.
"Num ambiente onde só se praticam atividades físicas e financeiras, e não existe reflexão, a questão moral é relativizada. Tudo pode, tudo se compra, tudo é imagem", diz Montagna.
E, como antes do advento da crise nada poderia inteferir na aparatosa felicidade do mega-investidor, ele não sabe como lidar com ela.
"Trata-se de um golpe nos delírios onipotentes dele, e isso implica na necessidade do retorno, ou do ingresso, no mundo das relações humanas -que não podem ser tratadas como se fossem commodities", diz o psicanalista.
Até esse momento, é como se o psiquismo desse paciente funcionasse graças a uma espécie de "prótese material". Segundo Montagna, é por isso que a reação ao debacle pode ser uma idéia ainda mais onisciente, do tipo "sim, podemos prever o futuro".

Direito natural
Basciamente, há dois tipos de perdedor: o primeiro é aquele que supervaloriza a perda (pela importância que dava a tudo o que tinha).
"Dinheiro é dinheiro e, apesar de seus inúmeros simbolismos subjetivos e intersubjetivos, perdê-lo é perder um valor em si. Algo que, socialmente, garante um tipo de segurança", explica Montagna.
O outro perdedor é aquele que sempre considerou tudo o que tinha "um direito natural", indiscutível. Acha que foi mais lesado porque perdeu algo que fazia parte dele, como a possibilidade de andar, falar ou enxergar. "Para muitos, ser rico equivale a ser inteligente", afirma o psicanalista.
Em todos os casos, quando se perde muito é preciso fazer a chamada "elaboração do luto". Na vivência do psicoterapeuta Ari Rehfeld, professor e supervisor de clínica psicológica na PUC, o mega-investidor costuma atravessar esse momento mais rapidamente que o médio.
A principal razão é que ele não obceca com a idéia de recuperar o dinheiro perdido. "O grande especulador sabe que vai voltar a ter muito, mas é "outro" dinheiro, não aquele que foi. Então, age como se dissesse: "Vamos enterrar o defunto", e pronto."

A pior morte
Evidentemente, o defunto não pode ser tratado de maneira tão prática quando se fala em perda do vigor sexual -um fantasma quase tão assustador quanto o do empobrecimento, concordam os psicanalistas.
Para usar a linguagem do mercado, o especulador que optou por um investimento pessoal "conservador" e, nas palavras de Jorge Forbes, faz com a mulher um sexo programado, não perde muito (já que, como diz o outro, não há muito que perder).
"A mulher que esse jovem financista escolhe não é necessariamente a que o atrai, e sim aquela com a qual vai fazer uma boa dupla social", diz Forbes.
Por sua vez, o investidor ousado, que preferiu optar por uma aplicação de risco, acha que pode ignorar o fracasso sexual transando com profissionais. Em seu isolamento, o "dono do mundo" resolve a questão como se fosse apenas uma necessidade fisiológica.
"Ouço gente que freqüenta puteiro quase todo dia", conta Cristiano Nabuco. É nesse ponto, diz Ari Rehfeld, que fica visível para o próprio analisando o quão fetichista é sua relação com o dinheiro. E, bom, aí só resta rezar para a crise (a financeira) acabar logo.


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