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MERCADO NO DIVÃ
Para psicanalistas, o desafio
de quem afundou com a crise
é reingressar no mundo das
relações humanas sem tratá-las como commodities
Com prejuízos milionários na Bolsa e contratos cancelados,
grandes investidores e empresários recorrem à psicanálise
para amenizar a angústia de serem "ex-donos do mundo"
PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL
A crise financeira deitou no
divã. Angustiado, o grande investidor, ex-"dono do mundo",
empenha-se em administrar a
quebradeira pessoal pensando
pela primeira vez em algo que
não seja dinheiro. Seu psicanalista, que gosta de tratar o pagamento da sessão como um assunto simbólico, acha difícil interpretar alguém com tão parcos recursos emocionais.
"Tenho um paciente que perdeu mais de U$ 1 milhão na Bolsa. Está prostrado. Na verdade,
apesar de ter família, ele já vinha vivendo uma vida solitária
fazia tempo. O envolvimento
dele é com o dinheiro e ponto.
Agora que perdeu muito, é como se não tivesse nada. Não sobrou assunto", explica o coordenador do ambulatório de
transtornos do impulso do Instituto de Psiquiatria da USP,
Cristiano Nabuco.
O terapeuta tenta apelar para
os supostos laços afetivo-familiares de seu analisando, mas
ouve reações irritadas: "Que esposa, porra?"
Segundo Nabuco, a frenética
busca financeira já é o sintoma
de uma estrutura pessoal falida. "O maior problema do grande investidor é justamente
aquilo que ele considera a solução: ganhar dinheiro. Afinal, se
ele desempenha tão bem esse
papel, o que vai mal?"
Para tentar diminuir os efeitos da crise, o especulador tenta se convencer de que não perdeu nada, uma vez que não tinha nada ("Era tudo papel").
"Hoje atendi um senhor de
53 anos, engenheiro, que fez
muitas obras importantes em
São Paulo e que, de repente,
com a crise, teve vários contratos cancelados. O dinheiro da
construtora estava todo aplicado na Bolsa, um negócio que
batia 70 mil pontos e passou a
bater 39 mil."
Mesmo assim, o engenheiro
diz a si mesmo que não está menos rico. "De fato, enquanto ele
não vender os papéis, eles estão
lá. Mas a gente sabe que, a curto
prazo, dificilmente a Bolsa vai
bater 70 mil pontos de novo",
afirma Nabuco.
Questionar o quê?
No entender do psicanalista
Jorge Forbes, o grande desafio
em relação a esse analisando é
fazê-lo se questionar.
"Em sua bem-sucedida relação com o dinheiro, o mega investidor se considera uma espécie de "dono do mundo" -e
tende a desprezar a humanidade. Então, ainda que freqüente
o consultório do analista, dificilmente faz análise. Não há
questões em uma pessoa que
não tem dúvidas", explica.
Forbes diz que os "donos-do-mundo" costumam se isolar em
grupos compostos por "iguais",
capazes de entender apenas a
necessidade de fazer dinheiro.
"Eles não existem por outra
razão. O jovem milionário que
fez fortuna em um banco de investimentos, por exemplo, tem
um valor social muito limitado.
As pessoas não o respeitam por
criar alguma coisa, curar, advogar ou escrever. Ele até compra
cultura, como obras de arte,
mas não reflete sobre ela."
Com base em sua clínica,
Forbes afirma que o investidor,
mesmo quebrado, "não é de
usar remédio". Ele resolve com
ginástica, toma vitamina.
"A crise financeira está fora
desses especuladores. Em momento algum eles se responsabilizam por ela ou são penalizados. Porque se alguma sanção
for imposta a essas criaturas
"fazedoras de dinheiro" vai haver uma quebradeira pior ainda
no mercado."
Ok, em casos muito extremos, se houver algo que realmente fuja ao controle, o financista toma um anti-depressivo.
"Afinal, para tudo precisa haver
um remédio comprável, palpável, tomável", diz Forbes, que
tem ouvido comentários sobre
"soluções genéticas".
"O que eles mais querem é
comprar a decodificação do
DNA. Vai custar U$ 1.000, dizem. Aí, sim, acontecerá uma
sucessão de orgasmos jubilatórios. Vai dar pra previnir doenças, programar a felicidade e
até agendá-la."
Prótese no psiquismo
Em sua experiência, o presidente da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo,
Plínio Montagna -e Forbes
também-, identifica os pacientes investidores com Sherman
McCoy, o personagem principal do romance "A Fogueira das
Vaidades", do jornalista americano Tom Wolfe.
McCoy vive para ganhar
muito e gastar tudo, com ítens
que lhe conferem status: mora
em um apartamentaço na rua
mais valorizada de Manhatan,
esbanja cartões de créditos,
tem uma mulher adequada,
uma amante emblemática, e
seus filhos estudam em escolas
particulares caras.
"Num ambiente onde só se
praticam atividades físicas e financeiras, e não existe reflexão,
a questão moral é relativizada.
Tudo pode, tudo se compra, tudo é imagem", diz Montagna.
E, como antes do advento da
crise nada poderia inteferir na
aparatosa felicidade do mega-investidor, ele não sabe como
lidar com ela.
"Trata-se de um golpe nos
delírios onipotentes dele, e isso
implica na necessidade do retorno, ou do ingresso, no mundo das relações humanas -que
não podem ser tratadas como
se fossem commodities", diz o
psicanalista.
Até esse momento, é como se
o psiquismo desse paciente
funcionasse graças a uma espécie de "prótese material". Segundo Montagna, é por isso que
a reação ao debacle pode ser
uma idéia ainda mais onisciente, do tipo "sim, podemos prever o futuro".
Direito natural
Basciamente, há dois tipos de
perdedor: o primeiro é aquele
que supervaloriza a perda (pela
importância que dava a tudo o
que tinha).
"Dinheiro é dinheiro e, apesar de seus inúmeros simbolismos subjetivos e intersubjetivos, perdê-lo é perder um valor
em si. Algo que, socialmente,
garante um tipo de segurança",
explica Montagna.
O outro perdedor é aquele
que sempre considerou tudo o
que tinha "um direito natural",
indiscutível. Acha que foi mais
lesado porque perdeu algo que
fazia parte dele, como a possibilidade de andar, falar ou enxergar. "Para muitos, ser rico equivale a ser inteligente", afirma o
psicanalista.
Em todos os casos, quando se
perde muito é preciso fazer a
chamada "elaboração do luto".
Na vivência do psicoterapeuta
Ari Rehfeld, professor e supervisor de clínica psicológica na
PUC, o mega-investidor costuma atravessar esse momento
mais rapidamente que o médio.
A principal razão é que ele
não obceca com a idéia de recuperar o dinheiro perdido. "O
grande especulador sabe que
vai voltar a ter muito, mas é "outro" dinheiro, não aquele que
foi. Então, age como se dissesse: "Vamos enterrar o defunto",
e pronto."
A pior morte
Evidentemente, o defunto
não pode ser tratado de maneira tão prática quando se fala em
perda do vigor sexual -um fantasma quase tão assustador
quanto o do empobrecimento,
concordam os psicanalistas.
Para usar a linguagem do
mercado, o especulador que
optou por um investimento
pessoal "conservador" e, nas
palavras de Jorge Forbes, faz
com a mulher um sexo programado, não perde muito (já que,
como diz o outro, não há muito
que perder).
"A mulher que esse jovem financista escolhe não é necessariamente a que o atrai, e sim
aquela com a qual vai fazer uma
boa dupla social", diz Forbes.
Por sua vez, o investidor ousado, que preferiu optar por
uma aplicação de risco, acha
que pode ignorar o fracasso sexual transando com profissionais. Em seu isolamento, o "dono do mundo" resolve a questão como se fosse apenas uma
necessidade fisiológica.
"Ouço gente que freqüenta
puteiro quase todo dia", conta
Cristiano Nabuco. É nesse ponto, diz Ari Rehfeld, que fica visível para o próprio analisando o
quão fetichista é sua relação
com o dinheiro. E, bom, aí só
resta rezar para a crise (a financeira) acabar logo.
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