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ENTREVISTA DA 2ª - MARCELO GOULART
Temos que fazer a reforma agrária que o governo não faz
Adversário do agronegócio, promotor ataca ruralistas e álcool e prega "horizonte utópico" sem grande propriedade
Edson Silva/Folha Imagem
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O promotor de Justiça do Meio Ambiente Marcelo Goulart em Ribeirão Preto
MARCIO AITH
ENVIADO ESPECIAL A RIBEIRÃO PRETO
MARCELO Goulart é símbolo da corrente mais polêmica
surgida no Ministério Público após a Constituição de
1988: a dos promotores que acreditam ser "agentes políticos", relevam a "letra fria" da lei e atuam ao lado do
MST e de ONGs contra o que definem como a elite do país. Aos 52 anos,
Goulart atua desde 1985 na região de Ribeirão Preto, onde se notabilizou
por disputas contra usineiros. Agora à frente do grupo responsável por
processos ligados ao ambiente, ele moveu, só em 2009, 55 ações civis públicas, inclusive contra grupos que produzem orgânicos. Seu próximo desejo é assegurar o "direito difuso" dos brasileiros à reforma agrária.
FOLHA - O senhor é conhecido por
atuar ao lado do MST e de entidades
ambientais. Esse é o papel de um
promotor?
MARCELO GOULART - A visão do
Ministério Público como mero
agente processual está superada desde a promulgação da
Constituição de 1988. O membro do Ministério Público é
agente político e, hoje, tem a incumbência constitucional de
defender o regime democrático
e implementar a estratégia institucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
FOLHA - Não há o risco de se aproximar demais de entidades das
quais deveria manter distância?
GOULART - Os membros do Ministério Público têm clareza do
seu papel social, dos limites de
suas funções e do uso do instrumental jurídico de que dispõem. Assim, a aproximação
entre Ministério Público e as
forças progressistas da sociedade torna-se inevitável e necessária. É um bem, não é um mal.
FOLHA - Como o sr. distingue as entidades progressistas das outras?
GOULART - As forças sociais democráticas são aquelas que assumem o compromisso de implementar o projeto democrático da Constituição de 1988. A
Constituição definiu para o
país um modelo de Estado social e de democracia participativa. Os sujeitos políticos que
atuam na defesa desse projeto
são aliados naturais do Ministério Público na luta pela construção da hegemonia democrática. Não é difícil identificá-los.
FOLHA - Por que os produtores rurais não seriam progressistas?
GOULART - Aqueles grupos que
defendem um modelo de agricultura social e ambientalmente sustentáveis estão no campo
democrático. Aqueles que, ao
contrário, defendem um modelo que leva ao descumprimento
da função social do imóvel rural
estão no campo dos adversários
do projeto democrático da
Constituição da República. Esses defendem o padrão de produção agrícola hoje prevalecente no Brasil.
FOLHA - Que padrão é esse?
GOULART - O padrão que gera a
concentração fundiária, que
utiliza de forma inadequada os
recursos naturais e que degrada o ambiente por ser baseado
na monocultura e na agroquímica. É um padrão concentrador da propriedade, da renda,
da riqueza e do poder político.
Por isso, contraria o projeto da
Constituição.
FOLHA - Entre as empresas processadas pelo senhor, estão algumas
conhecidas pela produção de açúcar
orgânico, sem agrotóxico.
GOULART - Não vamos nos enganar. Algumas usinas fazem
açúcar de ótima qualidade, orgânico, sem agrotóxico. Mas se
negam a fazer acordos conosco
na questão da reserva legal. E a
lei é clara: as propriedades rurais devem manter ao menos
20% da área com floresta permanente.
FOLHA - E se o desflorestamento
ocorreu antes, por outros proprietários e sob o respaldo de outras leis?
GOULART - Não existe direito
adquirido contra o ambiente.
As normas de ordem pública,
como as ambientais, aplicam-se não somente aos fatos ocorridos sob sua vigência, mas
também aos efeitos dos fatos
ocorridos anteriormente à sua
edição. Não permitir, hoje, a reparação com o reflorestamento
das reservas florestais legais é
castigar o planeta e a sociedade
à sanha do mercado.
FOLHA - O que o senhor acha do álcool combustível?
GOULART - A queima do combustível álcool também polui, e
o processo de produção do álcool é sujo. Temos a queima da
cana, o desmatamento, o uso
incontrolado de insumos químicos. Além da superexploração do trabalho. Mais: a produção do álcool exige economia de
escala, que somente se viabiliza
nesse padrão de produção baseado na monocultura e na
concentração fundiária. São
Paulo está se tornando um
grande canavial. O futuro não
está no álcool, mas em outras
alternativas, como o hidrogênio e a eletricidade. Diria que o
álcool é um combustível de
transição. Não terá vida longa.
FOLHA - A monocultura mecanizada não é uma tendência inexorável
da agricultura mundial?
GOULART - Claro que não. Não é
assim na Europa. Precisamos
discutir outros modelos. Temos um pensamento único por
parte da elite dirigente nacional em relação à agricultura.
FOLHA - Segundo estudo do Incra
(Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária), os assentamentos concentraram metade do desmatamento na Amazônia. O que o
sr. acha disso?
GOULART - Não há sentido em
desapropriar grandes imóveis
rurais que descumprem a função social para, no mesmo local, implantar assentamentos
antiambientais. Daí a importância da participação do Ministério Público no acompanhamento do desenvolvimento
dos assentamentos.
FOLHA - O senhor foi muito criticado no episódio da desapropriação
da fazenda da Barra, dentro de Ribeirão Preto. Como foi isso?
GOULART - É. Fizemos reforma
agrária nas barbas da capital do
agronegócio. Havia grandes
passivos ambientais e a suspeita de improdutividade. Instaurei um inquérito ainda no governo FHC. Chamei o superintendente do Incra e disse: precisa abrir processo administrativo de desapropriação. Ele
abriu. Chamaram-me de Robespierre, de promotor maluco. A desapropriação acabou
saindo, já no governo Lula.
FOLHA - A área da fazenda da Barra
parece inóspita, incipiente. A experiência deu errado?
GOULART - Inóspito, não. Incipiente, sim. Ali será implantado assentamento agroforestal
cujas bases são objeto de discussão no âmbito de inquérito
civil instaurado pela Promotoria de Justiça. O que está faltando é maior agilidade do Incra
na implantação da infraestrutura básica a viabilizar a produção e o reflorestamento. Dinheiro do BNDES para grandes
usinas, tem. Outro dia saiu um
empréstimo de R$ 80 milhões
para uma delas.
FOLHA - Por que a promoção da reforma agrária deveria ficar a cargo
de promotores?
GOULART - O papel do Ministério Público é claro: defender a
função social da terra e o direito difuso à reforma agrária, utilizando os instrumentos jurídicos que a Constituição e as leis
lhe conferem, firmando aliança
com os setores da sociedade civil que tenham o mesmo objetivo. A atuação radicalmente
contrária a essa está presente
na história desse país desde as
capitanias hereditárias. Seus
agentes são por demais conhecidos; com eles o Ministério
Público da Constituição de
1988 não se alinhará.
FOLHA - Como o sr. definiria uma
propriedade rural que não cumpre
sua função social?
GOULART - A improdutiva, a que
utiliza de forma inadequada os
recursos naturais, degrada o
ambiente ou impõe condições
sub-humanas de trabalho.
FOLHA - Uma área produtiva que
não se curve à sua definição de função social pode ser desapropriada?
GOULART - Minha definição,
não. A da Constituição. Juridicamente, pode. Agora, tem
muita propriedade antes dessa
para ser desapropriada. Tem
que começar pelos casos mais
graves.
FOLHA - O senhor parece não gostar de grandes propriedades rurais.
GOULART - No meu horizonte
utópico não está presente um
grande número de usinas de
açúcar e álcool, por exemplo.
No meu horizonte utópico estão a policultura, a geração de
postos de trabalho no campo e
a agricultura orgânica. Está o
acesso do povo à terra, que é
um direito fundamental negado desde o descobrimento. A
estrutura fundiária brasileira é
uma das principais razões de
nosso subdesenvolvimento.
FOLHA - O senhor é socialista?
GOULART - Como promotor de
Justiça, sou defensor da Constituição, do projeto democrático.
Essa é a minha missão. Minhas
convicções pessoais são só isso:
minhas convicções pessoais.
FOLHA - Quais convicções?
GOULART - Utopicamente?
Acredito na possibilidade de
construir uma sociedade socialista. Sob um ponto de vista
gramsciano, se avançarmos na
linha da Constituição, vamos
dar grandes passos para, no futuro, caminhar para uma sociedade socialista.
FOLHA - Como é que isso ocorreria?
GOULART - A partir do momento em que os princípios sociais
da Constituição forem sendo
efetivamente conquistados,
não só no papel, mas na realidade, haverá um choque lá na
frente. Teremos de discutir,
por exemplo, como é que a dignidade da pessoa humana pode
conviver com o direito de propriedade. E assim por diante.
FOLHA - Mas a Constituição não
protege o direito à propriedade?
GOULART - A propriedade tem
que cumprir a função social. O
direito de propriedade não é
absoluto. O imóvel que não
cumpre a função social deve ser
desapropriado. Não é uma opção. Está lá na Constituição.
Temos que construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Isso só vai acontecer quando
desconcentrarmos a terra.
FOLHA - O senhor já teve alguma
experiência política?
GOULART - Em 1991, afastei-me
do Ministério Público para ser
candidato a prefeito de Jardinópolis pelo PT. De quatro candidatos, consegui a façanha de
não ficar em último. Fiquei em
terceiro. Desfiliei-me e voltei à
instituição.
FOLHA - [Antonio] Gramsci [pensador marxista italiano], a quem o sr.
admira, atribui a força unificadora
da sociedade, que Maquiavel atribuía ao Príncipe, a um partido. Por
isso ele chamava o partido -no caso, o comunista- de "Moderno
Príncipe". Que partido, na sua opinião, ocupa a função de Moderno
Príncipe no Brasil?
GOULART - Hoje não faz sentido
pensar em partido político. São
as forças democráticas que
cumprem uma função hegemônica e que, articuladas, logo
avançam a batalha das ideias,
na imprensa, no Ministério Público, nas instituições. E criam
a base cultural para as mudanças políticas e econômicas. Esse é o caminho democrático da
construção de uma sociedade
livre, justa e solidária.
FOLHA - O senhor tem chefe?
GOULART - Não existe hierarquia funcional no Ministério
Público. Um de nossos princípios é o da independência funcional, que ganhou força com a
Constituição de 1988. Esse
princípio serve para proteger o
membro do Ministério Público
das pressões do poder político,
econômico e interno.
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