São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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ARTIGO

É preciso reformar a regulamentação

Crise expôs sérias falhas do sistema financeiro, e mudança, que deverá levar vários anos, é fundamental para restaurar a confiança no capitalismo de mercado

HENRY PAULSON
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

EM MEIO ao tumulto dos mercados, a prioridade premente para as autoridades dos EUA e mundiais é reparar o sistema financeiro e restaurar a economia. Igualmente importante será enfrentar as sérias falhas expostas pela crise. Esse processo de reflexão e reforma será crítico para restaurar a confiança e permitir que o capitalismo de mercado reconstrua nossas economias.
Essa será uma empreitada complexa, que durará muitos anos. A crise expôs sérias falhas em muitos aspectos do nosso sistema financeiro. Haverá propostas para uma regulamentação mais efetiva em áreas como os derivativos negociados em mercados de varejo financeiro e as transações a descoberto, e o mesmo valerá quanto às práticas de instituições financeiras, investidores, originadores de hipotecas e agências de classificação de crédito.
Precisaremos refletir sobre a premissa, sustentada por muito tempo, de que os investidores sofisticados estão capacitados a cuidar de si mesmos e requerem fiscalização mínima, se alguma. Nessas e em outras áreas, é preciso desenvolver regras que fomentem a estabilidade do mercado e ao mesmo tempo mantenham o preceito fundamental do capitalismo: se os investidores colhem os frutos dos riscos que assumem, também precisam arcar com as consequências negativas daqueles em que decidem incorrer.
Mas atualizar nossa regulamentação e nossas práticas de mercado não será suficiente. Também precisamos reformar e modernizar de maneira fundamental nossa arquitetura e nossas autoridades regulatórias. Embora as autoridades regulatórias tenham cooperado no combate às atuais dificuldades, fica claro que as jurisdições sobrepostas, as lacunas de jurisdição e de autoridade, as capacidades desiguais e a competição entre elas criaram o ambiente no qual os excessos puderam prosperar em todos os mercados. Consequentemente, tomar por foco apenas uma nova regulamentação será insuficiente: precisamos igualmente modernizar o sistema e as autoridades regulatórias dos Estados Unidos.
Não se trata de uma questão nova, mas decerto é difícil. Se procurarmos por algo positivo na carnificina criada por essa crise, pode ser o fato de que ela gerará o ímpeto para fazer aquilo que muitas pessoas, entre as quais me incluo, repetidamente apelaram: uma reforma real de nossa arquitetura regulatória.
Nos Estados Unidos, temos uma colcha de retalhos de agências regulatórias para as finanças. Os responsáveis por regulamentar uma empresa são determinados em larga medida pela forma que tomam seus negócios.
Assim, duas empresas financeiras que ofereçam produtos virtualmente idênticos, com atributos econômicos similares, podem ser regulamentadas de maneira muito diferente. Ninguém projetaria do zero um sistema como esse. Ele se desenvolveu gradualmente, sem muita consideração quanto a objetivos e metas de longo prazo. O sistema incentiva as empresas a procurar a regulamentação que melhor lhes convenha.

Novo modelo tem que se ajustar a dinamismo

OS MODELOS de negócios, produtos financeiros e mercados continuarão a evoluir. Essa é a natureza de um mercado dinâmico. Precisamos ter uma estrutura regulatória que regulamente esse dinamismo e se ajuste a ele.
A estrutura ideal deve refletir as razões pelas quais regulamentamos -e reconheceria que o sistema financeiro mudou muitíssimo desde o momento em que a arquitetura regulatória foi concebida. Em março de 2008, o Tesouro propôs um sistema com três agências de regulamentação federais: uma encarregada de manter a estabilidade de mercado em todo o setor financeiro, uma para fiscalizar a solidez das instituições com apoio explícito do governo e uma para proteger consumidores e investidores.
Nossa proposta de estrutura reconheceria que ocasionalmente haveria necessidade de o Fed (o BC dos EUA) oferecer liquidez em apoio a instituições que, historicamente, não estavam sob sua fiscalização. Uma estrutura regulatória organizada por objetivo tem muito mais chance de suportar o teste do tempo. Em um modelo baseado em objetivos, nenhuma empresa poderia mudar de agência por meio de uma simples mudança de forma.
Uma agência única para regulamentar a segurança e a solidez fiscalizaria todas as instituições que em última análise contam com garantias bancadas pelo dinheiro dos contribuintes e com outras formas de apoio do governo.
Por fim, a crise deixou muito claro que nosso sistema financeiro se beneficiaria de uma agência regulatória cujo foco fosse o risco em todo o sistema. Embora a suposição seja a de que o Fed assuma esse papel, ele não está estruturado para essa missão. Essa autoridade também teria o poder de intervir caso concluísse que o sistema financeiro estava em risco.
A disseminação de informações por essa agência regulatória também deveria ajudar a manter a disciplina do mercado, um conceito que continua a ser importante. Embora seja verdade que tanto as nossas autoridades regulatórias quanto a disciplina do mercado tenham fracassado em controlar a situação que levou à crise, estamos testemunhando forte dosagem de disciplina de mercado hoje, com investidores que requerem que as companhias apresentem resultados.
Outro motivo importante para constituir uma agência encarregada de regulamentar a estabilidade de mercado é atribuir a alguma autoridade a responsabilidade de examinar e tentar mitigar os problemas causados por empresas grandes demais para quebrar ou interconectadas demais para falir. O Congresso deveria criar autoridades regulatórias capazes de garantir que qualquer instituição, não importa de que tamanho, possa quebrar com o mínimo de impacto sobre o sistema.
Depois do colapso do Bear Stearns, em março de 2008, o Tesouro e o Fed expressaram preocupação por faltar ao governo esse tipo de autoridade de liquidação sobre instituições não bancárias em processo de quebra. A preocupação se tornou realidade quando o Lehman Brothers entrou em colapso, em setembro, e nem o Tesouro, nem o Fed, dispunham de autoridade para salvar a instituição ou administrar o processo de desmonte de outra maneira que não por uma falência.
Um sistema regulatório que trate instituições sistemicamente importantes de modo diferente apenas em razão de sua constituição formal não faz sentido nos mercados mundialmente interconectados que existem hoje. Qualquer reforma das autoridades regulatórias deve incluir a criação de autoridade federal específica para intervir e liquidar de maneira ordenada uma instituição não bancária em processo de quebra.
Por mais doloroso que o período seja, o custo para os Estados Unidos será ainda maior caso não aprendamos as lições que a crise oferece e reformemos nosso sistema regulatório. Uma nova estrutura regulatória que tenha a obrigação de prestar contas aos investidores, com flexibilidade para se adaptar às mudanças nos mercados e responsabilidades claras para interagir com contrapartes internacionais e criar uma infraestrutura contínua para o mercado mundial, inspirariam a confiança de que o sistema financeiro precisa para voltar a criar prosperidade em todos os setores.

O autor foi secretário do Tesouro do EUA, presidente do Goldman Sachs e hoje é pesquisador visitante na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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