|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DA 2ª
RON CHERNOW
"Bush tem que intervir agora porque não interveio antes"
Para historiador financeiro, presidente paga a conta por não ter supervisionado de maneira adequada o boom imobiliário
SÓ RICHARD NIXON poderia ter
ido à China, assim como só
George W. Bush pode fazer
uma intervenção no mercado
que, segundo cálculos, já equivale a 10%
do PIB dos EUA e pode subir. A ironia é
apontada pelo historiador financeiro
americano Ron Chernow, para quem
uma administração democrata progressista não sobreviveria a ações como
as tomadas recentemente pelo governo. A raiz do tumulto por que passa o
país, diz, está no que ele chama de "falha reguladora geral" da última década.
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
Autor de livros sobre Alexander Hamilton (1755-1804), o
primeiro secretário do Tesouro
americano, a Casa de Morgan,
sobre o banco que daria origem
ao moderno JP Morgan, e o icônico bilionário John D. Rockefeller (1839-1937), Ron Chernow, 59, diz que, após o "desaparecimento quase completo"
do universo dos bancos de investimento independentes, ele
teme pela saúde dos bancos comerciais. Leia a seguir os principais tópicos da entrevista dada à Folha na tarde de sexta,
por telefone, do Brooklyn, em
Nova York, onde ele vive.
MAIOR DA HISTÓRIA
É a pior crise financeira desde a década de 30. É claro que
não vimos o final dela, ainda estamos no meio. Pode ser que no
futuro historiadores concluam
que na verdade esse é apenas o
começo. Mas certamente nunca houve um período em que
tantos bancos de investimento
grandes de Wall Street foram
destruídos tão rapidamente.
Nós vimos o desaparecimento quase completo do universo
dos bancos de investimento independentes. Um deles, o Lehman Brothers, tinha mais de
150 anos de história e foi destruído em questão de dias.
Quanto aos bancos comerciais, problema potencialmente muito mais sério, sabemos
que o FDIC [Corporação Federal de Seguro de Depósito, na
sigla em inglês, órgão garantidor de operações bancárias]
tem mais de cem diferentes nomes em sua lista dos possíveis
causadores de problema. E só
vimos um número muito pequeno de bancos comerciais
darem problema até agora.
NOVA DOUTRINA
Nós tivemos por muito tempo nesse país uma doutrina
chamada "Muito grande para
quebrar" ("Too big to fail"), termo primeiro usado provavelmente no começo dos anos 90,
quando o Citicorp e alguns outros grandes bancos corriam o
risco de quebrar e se pensava
que as conseqüências seriam
muito grandes. Agora, nós temos muito mais instituições
com aquela escala e atuação.
Uma das coisas importantes
que devo ressaltar como historiador financeiro é que neste
país, particularmente em Wall
Street, sempre houve um medo
enorme de poder financeiro
concentrado. O que isso significava é que havia muitas leis que
restringiam o tamanho e atuação das instituições bancárias,
particularmente as comerciais.
Até os anos 20, por exemplo,
um banco não podia ter agências em outros Estados que não
o de sua sede. O que vimos nos
últimos anos foi uma derrocada
completa dessas barreiras entre operações interestaduais,
só então temos um sistema
bancário realmente nacional.
Assim, quando as pessoas dizem que o Washington Mutual
ou o Wachovia podem quebrar,
essas serão quebras que afetarão cada cidadezinha, cada rua
comercial do país, porque são
bancos com milhares de agências em diferentes Estados.
Já tivemos uma situação semelhante na década de 30, cuja
resposta foi o governo passar a
lei Glass-Steagall, que tentava
separar -e separou por muito
tempo- bancos comerciais de
bancos de investimento.
Isso foi revogado de fato no
final dos anos 90, e é uma das
razões de termos esses conglomerados financeiros muito
grandes e diversificados, que
oferecem vários e diferentes
serviços financeiros e que afetam muitas e diferentes vidas e
companhias aqui e no mundo.
Quando um desses conglomerados se mete em confusão, o
potencial de dano é obviamente muito maior do que antes.
"ESTATIZAÇÃO" DA AIG
Não há precedente nos EUA.
Em relação à Fannie Mae e
Freddy Mac, eram empresas
semigovernamentais criadas
pelo governo que operavam como empresas privadas. Então,
havia sempre a suposição de
que eram garantidas pelo governo. Quando este intervém e
faz o resgate, é quase esperado.
Muito diferente é o governo
encampando 80% de uma seguradora privada, em uma ação
de escala incrível. Para dar um
exemplo, os US$ 80 bilhões colocados na AIG representam
10% do portfolio que o Fed tem
em títulos do governo. É de se
pensar quantas ações como essa mais o banco poderá tomar.
DEPÓSITOS
No lado dos bancos comerciais, o FDIC cobra taxas das
entidades para, caso alguma
quebre, os depósitos de correntistas até US$ 100 mil serem garantidos. Uma quebra do Washington Mutual representaria
metade do dinheiro que o FDIC
tem para cobrir todas as quebras dos bancos comerciais.
Então, de novo, é de se imaginar quantas mais dessas quebras o governo pode bancar.
IRONIA DOS RESGATES
O mais chocante é que esse
governo, que defende histericamente o livre-mercado, protagonizou mais intervenções em
volume de dinheiro do que
qualquer governo democrata
progressista. É histórico.
As pessoas costumavam dizer que "só Nixon poderia ter
ido à China" [risos], no sentido
de que nenhum presidente democrata conseguiria reabrir as
relações dos EUA com aquele
país no final dos anos 60 e começo dos anos 70, porque não
sobreviveria à ação.
O mesmo se aplica ao que está acontecendo agora. Imagine
o grau da gritaria se o governo
Clinton, por exemplo, tivesse
feito algumas -não todas-
dessas ações interventoras.
O que houve foi uma falha reguladora geral durante a última
década que levou a essa bolha
imobiliária. Quando há regras
insuficientes supervisionando
a arena financeira, detonam-se
crises que ironicamente e muito paradoxalmente requerem
intervenções mais profundas
do que se tivesse havido supervisão e regulamentação adequadas o tempo todo.
Essa é a ironia: como o governo Bush não quis supervisionar
de verdade de maneira adequada esse boom imobiliário enquanto ele se formava, teve de
pagar a conta de fazer coisas
que, tenho certeza, nem em
seus delírios mais profundos
imaginava que faria. É realmente um divisor de águas.
OBAMA E MCCAIN
A reforma financeira está
vindo, independentemente do
próximo presidente. Infelizmente, no entanto, a história financeira deste país mostra que
as reformas só acontecem como conseqüência de crises.
Não temos um histórico muito bom de perceber problemas
enquanto eles ainda estão aparecendo e são gerenciáveis. De
alguma maneira, costumamos
esperar até que as coisas atinjam um ponto extremo e o governo seja forçado a agir.
Mas o interessante é ver que
mesmo John McCain vem falando da "ganância de Wall
Street". Essa não é a linguagem
habitual de um candidato republicano conservador, e sugere
que há um consenso no país sobre a necessidade de ação.
Além disso, os contribuintes
não querem pagar a conta das
centenas de bilhões de dólares
que foram e serão gastos nas
operações. No final, tudo se resume a como isso vai afetar
meu bolso, porque eu terei de
pagar por essas instituições que
quebraram. Afinal, a encampação da AIG prevê que à frente
os papéis sejam vendidos por
mais do que se pagou, mas isso
é só especulação. A conta ainda
pode ficar para o contribuinte.
Texto Anterior: Efeito que crise terá nas Bolsas é incerto Próximo Texto: Raio X Índice
|