São Paulo, quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

O amor segundo Nelson Rodrigues

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Há um cansaço mais ou menos geral. 2005 foi um ano meio deprimente para o Brasil. Crise política e escândalos de corrupção, de um lado. Frustrações na economia, de outro. Falamos nisso quase o tempo inteiro. A esta altura, todos os assuntos parecem exaustos e esgotados.
Não tenho ânimo hoje para tratar de juros, câmbio ou PIB. Como me escreveu uma leitora, formou-se um verdadeiro "coro natalino" em favor da diminuição dos juros. Uma multidão de economistas e jornalistas, muitos deles defensores contumazes da política econômica, declaram-se agora "surpresos" e "decepcionados" com o desempenho da economia, que deve crescer menos de 3% em 2005, talvez apenas 2,5%. Críticos da política econômica estão saindo pelo ladrão.
Esse consenso tardio produz um certo tédio. Mas, enfim, como dizia aquele letreiro de motel na Barra, no Rio: "Antes à tarde do que nunca". Por outro lado temos aquela frase de Nelson Rodrigues que, de tão citada, também está meio exausta: "Toda unanimidade é burra".
A citação me conduz ao tema de hoje. Fui salvo do tédio por uma coincidência providencial. Escrevo, como sempre, de véspera. Há exatamente 25 anos, no dia 21 de dezembro de 1980, morria Nelson Rodrigues, o santo padroeiro desta coluna.
Não posso deixar a data passar em branco. Afinal, foi com ele que aprendi a escrever para jornal. Um dos segredos, acredito, é tentar escrever como quem conversa com o leitor. Com as devidas transposições, é claro, e aí é que reside a dificuldade. Trata-se, na verdade, de simular uma conversa, elaborá-la num registro diferente, que é o do texto escrito, evitando porém as formalidades, os cacoetes e o jargão do texto econômico habitual. Não foi fácil escapar da camisa-de-força estilística dos economistas e escrever com naturalidade. Precisei de tempo, de prática e da leitura de Nelson Rodrigues.
No início, essa proximidade com o grande cronista carioca provocava uma certa estranheza. Afinal, ele raramente abordava temas econômicos. E tinha pelos economistas, segundo dizia, um "divertido horror". Mas aí é que está, leitor: eu também tenho, pelos economistas, um "divertido horror". O que aconteceu nos últimos 25 anos só fez reforçar essa aversão.
Poucos sabem que, no seu último ano de vida, Nelson tornou-se colunista da Folha. As duas últimas crônicas que escreveu, logo antes de morrer, são comoventes e delicadas, realmente maravilhosas. Prevalece a melancolia, mas entremeada de tiradas humorísticas, bem ao seu estilo. Ainda hoje, ao relê-las pela enésima vez, fiquei emocionado de novo. Elas foram republicadas em livro editado por este jornal em 2001 ("Figuras do Brasil: 80 Autores em 80 Anos de Folha", PubliFolha).
Seu último tema foi o amor, mais precisamente a nossa incapacidade de amar. Temos, dizia ele, uma vastíssima experiência amorosa e, paradoxalmente, não sabemos amar. O ser mais sensível e lúcido, diante da pessoa amada, é um incerto ou, pior, um inepto. Se soubéssemos amar, escreveu Nelson, não elevaríamos a voz nunca, jamais discutiríamos, jamais faríamos sofrer.
O momento mais doce do amor é o flerte. Veja, leitor, a beleza desta passagem: "O flerte não dilacera, não envenena. Um simples olhar, de uma luz mais viva; um sorriso leve é quanto basta para que dois seres experimentem a esperança de uma comunhão docemente infinita".
Quando é que o amor começa a morrer? Nem sempre são as grandes causas que liquidam o amor. Quase sempre o que decide é a soma de pequenos incidentes. No primeiro bate-boca, o sentimento amoroso começa a definhar, adverte Nelson: "Todos os fracassos matrimoniais vêm da soma de todos os "não chateia", de todos os "não amole", que vamos largando pela vida".
Vale a pena citar, na íntegra, o último parágrafo da sua última crônica: "Eu sempre digo que não é na recepção do Itamaraty que devemos ser perfeitos. Não. Devemos reservar o melhor de nós mesmos, de nossa delicadeza, de nossa cerimônia, de nosso charme, para a mais secreta intimidade do lar. É menos grave chamar de "chato" um embaixador, um ministro, do que o namorado, a noiva, a esposa, o marido. Se respeitássemos o nosso amor, não seríamos tão solitários e tão malqueridos".
Obrigado, Nelson.


Paulo Nogueira Batista Jr., 50, economista e professor da FGV-Eaesp, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005)


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