São Paulo, quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

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ARTIGO

Elefante numa sala escura

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

"Eu estava gradualmente começando a acreditar que a maior força da economia dos EUA fosse sua resistência -sua capacidade de absorver perturbações e se recuperar, muitas vezes de maneiras e em ritmo que seria difícil prever, muito menos orientar".
Alan Greenspan, "A Era da Turbulência"

TODOS ESPERAMOS que Alan Greenspan esteja certo quanto à economia dos EUA. O corte de juros decretado ontem pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) obterá sucesso caso Greenspan tenha razão. Mas muita gente teme que ele esteja errado. E muita gente, além disso, o culpa pela confusão atual. Assim, como a economia mundial veio a encontrar as atuais dificuldades?
Uma opinião é a de que a crise tenha sido causada por um sistema financeiro que padece de sérios defeitos. Um e-mail que recebi nesta semana delineava a acusação: a crise, dizia a mensagem, era produto de "decisões extraordinariamente cobiçosas, imorais, movidas exclusivamente por autointeresse e prejudicadas por ilusões, tomadas ao longo dos anos 2000, e anteriormente, por seres humanos de carne e osso posicionados no topo da pirâmide das finanças".
O argumento é o de que um sistema financeiro liberalizado, que oferece oportunidades de lucro extraordinário, exibe capacidade paralela de gerar erros que se perpetuam. A história é conhecida: inovação financeira e entusiasmo por riscos geram rápida expansão do crédito, o que eleva os preços dos ativos e assim justifica ainda mais expansão de crédito, e preços ainda mais altos para os ativos. Então chega o limite da alta no preços dos ativos, seguido por uma onda de vendas causada por pânico, insolvência em massa e por fim recessão. Isso implicaria que um sistema de crédito desregulamentado seja inerentemente instável e causador de instabilidade.
Essa é a linha de argumentação associada a Hyman Minsky, que foi professor da Universidade Washington, em St. Louis, até morrer. George Magnus, do UBS, conquistou distinção ao definir a crise atual como um "momento Minsky": "Um colapso das estruturas de dívida e das instituições depois de uma queda nos preços dos ativos, a suspensão das funções bancárias "normais" e uma intervenção ativa dos bancos centrais". Tudo isso se segue a uma dependência extraordinária do crescimento do crédito.
Os economistas poderiam oferecer explicações contrastantes para essa fragilidade. Uma delas está nos termos das respostas racionais a incentivos. Outra envolveria a miopia das pessoas. O contraste opõe inteligência iludida e tolice.
Aqueles que enfatizam a racionalidade podem apontar facilmente para os incentivos a que o setor financeiro assuma riscos indevidos. Isso resulta da interação entre "informação assimétrica" -pessoas bem posicionadas sabem melhor o que está acontecendo- e "risco moral" a percepção de que os governos resgatarão as instituições financeiras caso número suficiente delas encontre problemas ao mesmo tempo.
Há verdades evidentes nas duas proposições: caso, por exemplo, o governo britânico se sinta compelido a resgatar um banco de crédito imobiliário de porte modesto, como o Northern Rock, isso implica em imenso risco moral.
Mas é evidente também que todas as partes envolvidas -devedores, credores e autoridades regulatórias- podem se deixar varrer pelas marés humanas de euforia e pânico. Errar é humano. Esse é um dos motivos para que a regulamentação raramente contrarie os ciclos econômicos: as autoridades também se deixam arrastar. A desregulamentação financeira e a securitização do ciclo econômico mais recente encorajaram um círculo incomumente amplo de pessoas a acreditar que podiam sair ganhadoras, enquanto os riscos, e os custos, caberiam a terceiros.
Mas existe também uma perspectiva diferente. O argumento, nesse caso, é o de que a política monetária dos EUA foi mantida frouxa demais por tempo demais, depois do colapso da bolha de Wall Street, em 2000, e do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. É uma opinião crítica bastante difundida entre os economistas. Ela é igualmente popular nos mercados financeiros. "A culpa não é nossa; a culpa é de Alan Greenspan, aquele assoprador serial de bolhas".
O argumento de que a crise é produto de séria desordem na política monetária surge em três variantes: a visão ortodoxa é a de que um erro foi cometido; uma segunda vertente, menos ortodoxa, sustenta que o erro foi intelectual -a determinação do Fed de ignorar os preços dos ativos na formação da política monetária; uma terceira visão, ainda menos ortodoxa, é a de que dinheiro criado artificialmente é inerentemente instável. Tudo isso será resolvido quando, como Greenspan acreditava, o mundo retornar ao ouro. Como Ulisses, os seres humanos precisam se acorrentar ao mastro de ouro se desejam evitar repetidos naufrágios monetários.
Uma perspectiva final é a de que a crise deriva em última análise não da fragilidade financeira nem dos erros de bancos centrais, mas de distúrbios macroeconômicos graves na economia mundial. O maior deles seriam os imensos fluxos de capital excedente dos emergentes asiáticos (em especial a China), dos países exportadores de petróleo e alguns países de alta renda, seguido pelos superávits financeiros dos setores empresariais.
Segundo essa visão, os BCs e, com eles, os mercados financeiros estavam só reagindo ao ambiente econômico mundial. O excedente de poupança não significava só baixas taxas de juros, mas necessidade de gerar nível elevado de demanda compensatória nos países importadores de capital, dos quais os EUA eram de longe o maior.
De acordo com essa visão (com a qual concordo), o Fed só poderia ter evitado a adoção de políticas monetárias que agora parecem demasiadamente expansivas caso estivesse disposto a aceitar uma prolongada recessão e uma potencial contração econômica. Mas ele nem desejava nem tinha por missão permitir que isso acontecesse.
O dilema do Fed, portanto, era o de que a única maneira de manter a demanda interna em nível suficientemente elevado para compensar os influxos de capital seria um boom de crédito. Isso causou preços exageradamente altos para os ativos, especialmente na habitação. O doloroso legado do período é a deflação de dívidas.
Quando leio essas análises, sempre lembro da história em que quatro pessoas são convidadas a entrar em uma sala escura, segurar a primeira coisa que encontrarem e dizer de que se trata. Uma diz que é uma cobra. A segunda, um pedaço de couro. A terceira, um tronco de árvore. A quarta diz que segurou uma corda. O que havia de fato na sala era um elefante.
A verdade é que uma história acurada dos fatos recentes envolveria diversos elementos. Os desequilíbrios macroeconômicos mundiais desempenharam papel importante nas decisões de política monetária. Que levaram a bolhas nos preços das moradias e a imensos excessos financeiros. Agora as autoridades precisam combater os sintomas da melhor maneira possível. Mas precisam enfrentar as causas subjacentes, se desejam evitar novas perturbações.


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