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Modo de consumo norte-americano foi destruído, diz Stiglitz
Para ele, recuperação dos EUA ainda é muito frágil e vai levar muito tempo para o mercado de trabalho se recuperar
Economista diz que quase nada foi feito para "impedir que continuemos reféns no futuro" da interdependência
das instituições financeiras
NATÁLIA PAIVA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Mesmo que a recessão técnica esteja perto do fim, ainda há
um longo caminho rumo à recuperação econômica -é o
atraso entre os instrumentos
de medição econômica que temos (como o PIB) e o bem-estar da população, que precisa
de emprego e renda para sentir
que, de fato, a recessão acabou.
Após a melhora do setor financeiro e do ajuste de estoques, a economia encara seu
problema fundamental: a destruição do motor global, o modelo de consumo dos EUA, disse o economista Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia, em entrevista por telefone
de sua casa em Nova York.
FOLHA - Economistas e analistas
dizem que a recessão americana deve ter terminado em julho, e o BC
dos EUA afirmou que a atividade
econômica do país já se normaliza.
Houve exagero, no ano passado, sobre a extensão que a crise teria ou
agora há otimismo excessivo?
JOSEPH STIGLITZ - O termo recessão é normalmente usado para
crescimento negativo. Se a economia está se normalizando e o
crescimento não é mais negativo, muitos economistas iriam
dizer que a recessão acabou.
Mas, para a maioria das pessoas e mesmo para muitos economistas, a definição de recessão tem a ver com a restauração da economia, o que significa você conseguir trabalho. O
desemprego, na verdade, ainda
deve crescer e talvez significativamente. Há vários riscos
rondando o setor financeiro.
Então, mesmo que temporariamente a economia se normalize ou até mesmo cresça, a
recuperação ainda é muito frágil e vai levar muito tempo para
o mercado de trabalho se recuperar. Os EUA tiveram uma bolha no mercado imobiliário que
apoiou um boom de consumo.
No estouro da bolha, o consumo que apoiava a economia
americana -e a do resto do
mundo- teve de diminuir, com
os índices de poupança indo de
zero para 5%, 6%. As pessoas
poupavam muito pouco porque esperavam o aumento da
renda por meio da valorização
do preço das casas. Isso não
mais existe. Parte considerável
dos americanos agora perde dinheiro com suas casas. Mesmo
que os bancos estivessem totalmente recuperados -e não estão-, eles estariam poupando
mais. O modelo de consumo
americano foi destruído.
Isso tudo significa que em
médio prazo a economia americana tem problemas fundamentais. Além disso, temos o
total derretimento do setor financeiro pós-15 de setembro
[quebra do Lehman Brothers],
e nós tivemos um ajuste de estoques como resultado da consequente desaceleração da economia. O pior aspecto do congelamento do setor financeiro
e do ajuste de estoques talvez
tenha se encerrado. Mas isso
significa que estamos de volta
ao problema fundamental de
fundo: o que sustentou a economia americana antes da crise era o consumo, por meio de
uma bolha no mercado imobiliário que agora foi destruída.
FOLHA - A hipótese da autossuficiência dos mercados guiou, por décadas, a maioria dos modelos financeiros. Após esta crise, o que muda?
STIGLITZ - Creio que essa hipótese foi uma bolha que também
se estourou com essa crise.
Mesmo antes havia provas
contundentes contra essa hipótese, mas era mais uma ideologia, usada para apoiar interesses específicos no setor financeiro. Por exemplo, em
1989, o mercado de ações sofreu queda de 25%. Não havia
evento possível que pudesse
corresponder ao desaparecimento de um quarto do capital
acionário do mundo. E mesmo
assim houve muita gente que
continuou acreditando nela.
FOLHA - O sr. avalia que a crise vai
ajudar a "fazer a globalização funcionar", expressão que sugere em
um de seus livros, ou o xadrez geopolítico deve apenas sofrer correções cosméticas, com um G20 pouco
incisivo para fazer mudanças?
STIGLITZ - Essa pergunta ainda
está solta no ar. No início da
crise, esperava que houvesse
reformas fundamentais nas estruturas regulatórias dos EUA
e na maneira com a qual a globalização é gerenciada, o que
levaria a uma economia mundial mais estável e à maior
equidade, tanto interna como
entre países. Agora estou mais
cético. Principalmente porque
assisti ao resgate financeiro
nos EUA: na verdade, os problemas foram reforçados, com
os grandes bancos ficando ainda maiores, com o fracasso em
fazer algo para sanar os problemas de fundo mais importantes, com muitas das reformas
sendo mais "cosméticas".
FOLHA - Na reunião mais recente
do G20, em abril, a avaliação foi de
que "um grande passo" havia sido
dado rumo à regulação financeira. O
senhor mesmo afirmou isso à época.
Quatro meses depois, o que foi revelado como mera retórica?
STIGLITZ - É um passo rumo à
direção certa, mas claramente
não o suficiente. O ponto crítico é que os bancos estão se tornando não só grandes demais
para quebrar mas também
grandes demais para serem financeiramente solucionáveis.
Há uma apreciação insuficiente até mesmo da natureza do
problema, que é não apenas tamanho, mas interdependência.
E isso significa que firmas como AIG e Goldman Sachs podem fazer a economia americana de refém. Nós sabemos disso agora, mas não fizemos absolutamente nada, ou quase
nada, para impedir que continuemos reféns no futuro.
FOLHA - Pode-se dizer então que,
como democrata e apoiador de Obama ao menos desde 2007, o sr. está
decepcionado com o governo?
STIGLITZ - Na maioria das áreas
ele está bem, bem melhor do
que a administração Bush. Por
exemplo, fizeram um pacote de
estímulo; a administração
Bush não teve nenhum. Eles fizeram algo em relação às hipotecas; o governo Bush, quase
nada. Mas o plano de estímulo
não foi tão grande quando deveria ter sido e não é bem desenhado. Fizeram muitos cortes
de impostos, o que é relativamente inútil. Relativamente
poucas hipotecas foram refinanciadas. Os resgates aos bancos foram totalmente injustos
e custaram, aos contribuintes
americanos, centenas de trilhões de dólares. Obviamente,
com esses exemplos, estou decepcionado. Mas também estou satisfeito porque houve,
por exemplo, progresso significativo em relação ao Iraque.
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