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ENTREVISTA DA 2ª - ANTONIO DELFIM NETTO
Ação de Lula afastou crise, apesar de erros do governo
Para ex-ministro, papel pessoal do presidente ao estimular brasileiro a consumir foi decisivo e compensou políticas monetária e fiscal equivocadas
Leticia Moreira/Folha Imagem
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Delfim Netto em seu escritório no Pacaembu (SP)
HÁ 50 anos o economista Antonio Delfim Netto publicou "O Problema do
Café no Brasil", sua tese de doutorado.
Pelo uso da história na abordagem de
um dilema de comércio agrícola, a obra virou um
clássico do pensamento econômico brasileiro. Em
entrevista à Folha, Delfim diz que, hoje, o texto
nem seria publicado. "Não seria aceito em lugar
nenhum. Estamos controlados por uma matemática bastarda. Há um domínio do brilhantismo, da
técnica manipuladora sobre o realismo." Aos 81
anos, o ex-ministro da Fazenda recupera-se de
uma cirurgia para colocação de stents em duas artérias. "Aprendi a respeitar os médicos. São muito menos ortodoxos do que os economistas formados na visão única", diz ele.
MARCIO AITH
DA REPORTAGEM LOCAL
Delfim acha que o Brasil saiu
da crise não exatamente por
medidas técnicas originais,
mas porque Lula, pessoalmente, dissipou o pessimismo.
"Com incrível ousadia, ele pôs
todo o seu patrimônio em risco
pedindo aos brasileiros que
consumissem. Deu certo."
O ex-ministro, no entanto,
enxerga um problema sob a névoa da euforia reinante no país.
Segundo ele, será difícil financiar o inchaço de gastos públicos irreversíveis, que se sedimentam "geologicamente" no
Orçamento. "Está armado aí
um enrosco da maior gravidade, pois temos a mais rápida redução da taxa de fertilidade no
Ocidente."
FOLHA - Em um recente artigo, o
senhor tratou o aparelhamento do
Estado brasileiro como um defeito
comum a todos os governos, não
apenas àqueles com DNA sindical,
como o atual. O aparelhamento, então, não tem credo ou ideologia?
ANTONIO DELFIM NETTO - Continuo com a convicção de que
sindicato mais política é igual à
corrupção. Essa fórmula, descoberta no século passado pelo
sociólogo alemão Robert Michels, continua válida. Eu só
quis dizer que cada governo
aparelha a seu modo, por motivos diferentes. Veja o caso de
Brasília. Na primeira leva, a cidade recebeu mineiros. Depois
vieram maranhenses, alagoanos e paulistas. Agora, sindicalistas. O grande drama desse
problema é que ninguém sai, só
entra. É isso. Se fizermos uma
análise geológica de Brasília, fatiagráfica, notaremos camadas
que se superpõem. E qual é a
regra do jogo? É a nova camada
respeitar cuidadosamente os
benefícios recebidos pela que
está sendo substituída.
FOLHA - Qual é o efeito desse acúmulo?
DELFIM NETTO - Isso está levando
o Estado a uma situação de
quase insolvência fiscal. Está
armado aí um enrosco da maior
gravidade. O problema mais
grave é da sustentação do sistema da seguridade social e da
Previdência. Não é possível carregar um país onde o salário
médio do aposentado do Judiciário é mais de 30 vezes o salário do trabalhador aposentado
no INSS. No Legislativo, é 20
vezes; no Executivo, 12 a 14.
Uma casta se instalou em Brasília e, com as camadas de aparelhamento, aprofundou essa
divergência. Não há controle
sobre o serviço público.
FOLHA - Qual é a evidência de que
essa situação é insustentável?
DELFIM NETTO - É simples. O Brasil vai ficar velho antes de ficar
rico. A população brasileira vai
começar a diminuir em 2035
ou 2040. Temos a mais rápida
redução da taxa de fertilidade
no Ocidente. A situação pode
parecer confortável hoje, mas,
olhando dez anos à frente, o
quadro muda. Há, também sob
o ponto de vista da análise demográfica, o risco do câmbio
real fora da posição. Se perdurar, essa disfunção vai alterar a
estrutura produtiva.
O Brasil, daqui a dez anos, vai
ter 250 milhões de habitantes.
Vai ter que dar emprego razoável para 140 milhões de pessoas. Se essa gente não receber
oportunidades de emprego
com remuneração razoável,
não tem solução. Esses empregos não virão da agricultura. Só
a indústria e os serviços podem
dar conta disso. E o câmbio errado destrói esses setores.
FOLHA - Como o governo lida com
essas questões?
DELFIM NETTO - Só agora o governo está se mexendo para resolver o problema do câmbio. Mas
ainda há aqueles que acham,
sem evidência empírica, que
não se pode atuar para consertá-lo. Uma imbecilidade. Quanto aos gastos públicos, o comportamento tanto do Executivo
como do Congresso é apavorante. Estudo feito pelo competente economista José Roberto
Afonso, ligado ao PSDB, aponta
que os projetos malucos em
tramitação no Congresso, além
das maluquices do Executivo,
representam uma despesa pública adicional de mais de R$
100 bilhões por ano.
FOLHA - Mas não é natural aumentar gasto público na crise? Não é disso que se trata a política anticíclica?
DELFIM NETTO - No mundo inteiro a política anticíclica termina
quando a demanda privada volta ao nível anterior. Aqui ela
continua carregando o custeio
depois de terminado o ciclo. No
Brasil, política anticíclica nunca é anticíclica.
FOLHA - Mas e o sucesso do país no
enfrentamento à crise?
DELFIM NETTO - O país se recuperou mesmo tendo políticas fiscais e monetárias erradas. O diferencial foi o bate-caixa do Lula. O presidente liderou o país
ao pedir aos brasileiros que
continuassem a consumir. Nenhum economista ousaria fazer isso. Seria considerado um
louco heterodoxo. Além disso,
o Brasil havia melhorado muito. Na verdade, a Constituição
de 1988, apesar de seus exageros, de ter inventado gastos que
não cabiam no PIB, criou uma
estrutura institucional que está
sendo seguida. O Brasil é o país
com melhor situação institucional entre os Brics (Brasil,
Rússia, Índia, China). Somos
uma democracia constituída.
FOLHA - E o risco de autoritarismo
popular apontado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
DELFIM - O Fernando é um sujeito extremamente inteligente, esperto, e não consegue viver sem um alto protagonismo
público. É um provocador
enorme. Ele se diverte com esse negócio. As pessoas imaginam que ele está empenhado
num estudo sociológico. Que
nada. Ele está empenhado numa diversão. E, quando o sujeito responde agressivamente ao
Fernando, ele está cumprindo
a missão que o Fernando impôs
a ele. Esse alerta que ele fez não
ajuda em nada.
FOLHA - Por que não ajuda?
DELFIM - Se fosse ele o presidente, teria aceitado o terceiro
mandato e destruído a democracia. Essa foi a inteligência do
Lula. Resistir a um terceiro
mandato a despeito de tudo o
que fizeram para que ele aceitasse. Isso faz uma diferença.
Outra injustiça do Fernando
é ignorar que o Lula teve um
papel decisivo na rápida superação da crise. Nenhum intelectual, nenhuma pessoa que
pretenda ter um conhecimento
maior de economia teria assumido o risco que o Lula assumiu. Todos pediram para encolher, para pisar no freio. Os
banqueiros privados foram os
primeiros. O Lula pôs todo o
seu patrimônio em risco dizendo: consuma, o desemprego só
virá se você não consumir.
FOLHA - Qual é o potencial de
transferência de votos do presidente Lula?
DELFIM - A ministra Dilma é
uma administradora competente. Quem duvidar disso vai
se decepcionar. Mas a transferência de votos não é segura.
Tivemos uma prova empírica
disso com a última derrota eleitoral da Marta [Suplicy] em São
Paulo (nas eleições municipais
de 2008). O Lula passeou de
mãos dadas com ela duas vezes
na cidade, na zona leste. Na segunda vez, trouxe cinco governadores com ele. E qual foi o resultado? Muito pequeno. Talvez no Nordeste você tenha um
efeito maior, mas, na verdade,
onde conta, do rio Grande para
baixo, o poder de transferência
parece não valer tanto.
FOLHA - Como o sr. avalia a cautela
do governador Serra em se atirar na
disputa?
DELFIM - O Serra é sem dúvida
um grande administrador, tem
ideias próprias que são bastante razoáveis e está fazendo um
bom governo. É um competidor muito forte e está se cuidando. Seu problema é que o
PSDB não se decidiu. Tem o Aécio nesse processo, que não é só
um candidato "redoutable" [temível], mas um agente político
eficiente, um centrifugador.
Enquanto o PSDB não se decidir, os dois agirão com cuidado.
FOLHA - O que está em jogo nas
eleições do ano que vem?
DELFIM - Acho que todos têm
que entender, inclusive a Dilma, que o próximo governo não
será uma continuação do Lula.
O próximo governo terá de enfrentar os problemas do século
21, que embute uma mudança
radical na estrutura produtiva.
Principalmente na maneira como vamos fornecer energia para o desenvolvimento.
FOLHA - Há 50 anos o sr. publicou
"O Problema do Café no Brasil". Como seria recebido hoje um trabalho
econômico com a mesma abordagem histórica?
DELFIM - Não seria aceito em
lugar nenhum. Hoje estamos
controlados por uma matemática bastarda. Há um domínio
do brilhantismo, da técnica
manipuladora sobre o realismo. Naquele tempo eu usava a
matemática de forma moderada. Não havia, como há hoje,
nenhum axioma que viola a
realidade. Não redigi o artigo
com lemas, pois a economia
trata de dilemas. A matemática
é que trata de lemas.
FOLHA - Como essa visão matemática afeta a análise econômica?
DELFIM - Em novembro de
2008, a rainha [Elizabeth 2ª, do
Reino Unido] chegou à London
School of Economics e disse: "A
única coisa que eu quero saber
é o seguinte: há um século os
senhores estão aqui estudando.
Como é que não previram essa
crise?". Vários grupos de professores, então, prepararam
respostas a ela. Os neoclássicos
detectaram problemas de cálculos, erros em fórmulas. Já
aqueles de orientação mais
keynesiana disseram simplesmente que os economistas haviam abandonado a economia.
Substituíram-na por uma matemática exagerada. Esqueceram a história, esqueceram a filosofia, esqueceram a psicologia, a geografia. É isso mesmo.
FOLHA - O sr. teve um problema de
saúde recente. Teve mais sorte com
médicos do que com economistas?
DELFIM - Nunca tinha entrado
num hospital, nunca tinha feito
uma operação. Aos 81 anos,
costumo dizer, tive minha primeira experiência. Fiquei dois
meses baleado, mas estou bem,
estou voltando a trabalhar.
Aprendi a respeitar os médicos
muito mais do que respeitava.
O médico é muito menos ortodoxo do que um economista
formado na visão única.
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