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ENTREVISTA
PASCAL LAMY
Poder dos emergentes deve ser reconhecido
Diretor-geral da OMC afirma que maior força desses países cria um equilíbrio nas relações internacionais
Max Rossi - 15.nov.07/Reuters
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Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, durante congresso em Roma |
O
SOCIALISTA que comanda o organismo
considerado uma espécie de juiz do capitalismo global vê com bons olhos o poder
conquistado nos últimos anos por países
emergentes como o Brasil -e que está criando um novo equilíbrio de forças nas relações internacionais.
Para o francês Pascal Lamy, diretor-geral da OMC
(Organização Mundial do Comércio), essa é uma realidade irreversível. Ele deixa claro, por exemplo, que
considera só uma questão de tempo a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, uma das metas
da diplomacia do governo Lula.
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
Em entrevista à Folha em
seu gabinete na imponente sede da OMC, às margens do lago
Léman, em Genebra, Lamy elogiou a estratégia comercial brasileira e mostrou confiança de
que a desacreditada Rodada
Doha finalmente tenha um
desfecho positivo em 2008.
Mas lembrou aos brasileiros
que, com o poder, aumenta
também a responsabilidade.
Em sua opinião, não há nenhuma contradição entre ser
socialista e estar no topo de
uma organização demonizada
por grupos esquerdistas e antiglobalização. "Estou em boa
companhia", diz Lamy, citando
governos considerados de esquerda, como os do Brasil e do
Chile, que também defendem a
abertura do comércio.
Lamy, 60, chegou ao comando da OMC em 2005, depois de
derrotar, entre outros candidatos ao cargo, o brasileiro Luiz
Felipe de Seixas Corrêa. Formado em administração e estudos políticos, teve longa trajetória no serviço público francês, chegando a assessor do
premiê Pierre Mauroy.
Também fez carreira na
União Européia. Primeiro, como chefe-de-gabinete do presidente da Comissão Européia,
Jacques Delors. Depois, como
comissário europeu de Comércio. Entre os dois cargos, chefiou a equipe que recuperou o
banco francês Crédit Lyonnais,
onde atuou como presidente
até sua privatização, em 1999.
Leia a seguir trechos de entrevista à Folha.
FOLHA - Mais um ano termina com
a Rodada Doha em um impasse. O
que deu errado e o que o sr. espera
para 2008?
PASCAL LAMY - Não considero
um impasse. A negociação continua. O nível de atividade neste momento na OMC é bem
mais alto do que era no ano passado. Em 2007, nós tivemos
boas e más notícias. A má foi o
colapso do processo do G4 em
Potsdam [na Alemanha]. Mas a
boa notícia é que foi aberta uma
nova avenida para avançar a
negociação, que é voltar para o
plenário e aos chefes dos comitês. Todos sabem que negociações entre 151 países são muito
complexas, mas estamos chegando ao estágio final. Minha
sensação é que poderemos terminar toda a Rodada Doha em
2008. Essa é um determinação
compartilhada por todos os
membros da organização.
FOLHA - Recentemente, o sr. propôs um calendário para que as negociações sejam concluídas até o
fim de 2008. Como esse calendário
será afetado pelo fato de que na Casa Branca estará um presidente no
último ano de mandato?
LAMY - Meu papel é dar uma
moldura ao processo. Não propus prazos finais. Os Estados
Unidos são um país importante, mas há eleições em vários
lugares o tempo todo, temos de
conviver com esses ciclos. O fato de estarmos no fim de um
governo [nos EUA] é positivo,
até porque as pessoas gostam
de deixar uma ficha limpa para
a história. A verdade é que o comércio internacional tem hoje
papel mais relevante na política doméstica do que há 50 anos.
O mundo mudou e, na minha
opinião, para melhor. O comércio, enquanto transmissor da
globalização, tem grande impacto na vida das pessoas.
FOLHA - Quais as lições da Conferência de Bali para a Rodada Doha?
Se o mundo não consegue ir além de
um acordo vago sobre um tema em
que o objetivo coletivo é claro, como
o ambiente, como esperar consenso
em um processo com interesses tão
diversos, como o comércio?
LAMY - Chegar a um acordo sobre mudança climática é mais
difícil que concluir a Rodada
Doha. Bilhões em subsídios ou
toneladas de frango ou porco
são mercadorias mais fáceis de
lidar do que emissões de CO2.
Mas há coisas em comum. Primeiro, há um bem público com
que nos preocupar. O seguro
contra o protecionismo apoiado pela OMC é um bem comum. Só que o bem público
tem um histórico mais longo
em comércio, pois estamos
nesse negócio há 60 anos, enquanto o tema da mudança climática é mais recente. Em segundo lugar, há o equilíbrio de
forças nas negociações, que
mudou fundamentalmente nos
últimos 50 anos. Antes, era basicamente uma negociação entre o Norte rico e o Sul pobre.
Hoje, a situação mudou totalmente. Temos potências emergentes, que querem sua parte
do bolo e do processo de tomada de decisões. Não que Brasil e
Índia não participassem antes
das negociações comerciais.
Mas seu envolvimento e sua
capacidade de direcionar a
agenda eram muito menores.
Se a agricultura é o assunto
"número 1" da atual negociação, não é porque Estados Unidos, União Européia e Japão
gostam, mas porque os países
emergentes impuseram isso na
agenda. No caso da mudança
climática, há o mesmo dilema
da nova realidade, que é o reequilíbrio em volta da mesa de
negociações, o que também se
vê no Banco Mundial e no FMI
[Fundo Monetário Internacional]. Acontece o mesmo nas
discussões sobre [a reforma do]
Conselho de Segurança da
ONU. O mesmo problema: uma
velha estrutura, que está lá há
60 anos e não cabe na realidade
de hoje. E não se pode pedir a
países como Brasil, Índia ou
China que assumam compromissos em relação ao clima se
eles não são parte do jogo.
FOLHA - Como as preocupações
ambientais deveriam ser incluídas
nas negociações comerciais? O álcool, por exemplo, deveria ser considerado uma categoria especial?
LAMY - A noção de que o comércio deve contribuir para o
desenvolvimento sustentável é
um princípio da OMC. O álcool
é parte da negociação agrícola.
Há a convicção de que deveríamos fazer mais para promover
os bens ambientais. Agora, o
que é exatamente um bem ambiental continua uma questão
aberta. Isso é verdade tanto para máquinas de lavar e bicicletas como para o álcool.
FOLHA - Os países ricos, ao que parece, estão custando a se adaptar ao
novo equilíbrio de poder. O que o sr.
achou da declaração da secretária
do Comércio dos Estados Unidos,
Susan Schwab, comparando Brasil e
Índia a adolescentes?
LAMY - É uma realidade e é um
reflexo da mudança no equilíbrio de forças. Eu não usaria essa frase, pois parece algo como
"eu sou um adulto e você é um
adolescente". Os países emergentes estão absolutamente
certos e têm toda a legitimidade em querer reequilibrar o
mundo da agricultura, assim
como estavam certos em relação a têxteis na primeira Rodada. Estão certos, mas têm de
pagar um preço. Ser participante ativo significa ganhar direitos, mas também ter responsabilidades.
FOLHA - Há quem critique o Brasil
por exigir privilégios de país pobre
enquanto reivindica poderes de país
rico. Como conciliar isso?
LAMY - É fato que países como
Brasil, Índia, África do Sul e Indonésia continuam pobres, já
que a porcentagem da população que vive com US$ 2 por dia
ainda é muito alta, Mas também é verdade que estão muito
mais poderosos. E todos escolheram a mesma avenida para o
desenvolvimento, que é a integração no comércio internacional. São países com grandes
vantagens comparativas e querem usá-las. Ser pobre e poderoso é a nova realidade do mundo de hoje. Por mim, está ótimo, sou um social-democrata.
Não tenho objeção a que os pobres tenham mais poder de negociação.
FOLHA - Como o sr. vê a estratégia
do Brasil nas negociações de Doha?
LAMY - É muito bem construída, pois combina a dimensão
geopolítica com as vantagens
comparativas do Brasil, notadamente na agricultura. Claro,
se você pode matar dois pássaros com uma pedra, ou seja, ser
uma força de transformação
geopolítica e ainda conseguir
seus objetivos, por que não? É
uma estratégia inteligente, enquadra-se nos interesses macroeconômicos do Brasil e tem
sido extremamente bem-sucedida nos últimos anos. Basta
olharmos para o comércio, o
superávit comercial, os indicadores macroeconômicos, a inflação, o valor da moeda. A
moeda brasileira dobrou de valor em relação ao dólar nos últimos cinco anos. A noção de que
abrir [os mercados] é bom funciona, mas funciona ainda melhor se você equaliza o campo
de ação, o que é a posição básica
do Brasil em agricultura. Acho
que é muito eficiente. Acredito
que o presidente Lula e o ministro [das Relações Exteriores, Celso] Amorim queiram
concluir a Rodada, já que moveram a negociação de uma forma boa para o Brasil.
FOLHA - Em que o Brasil poderia ser
mais flexível?
LAMY - Em temas como tarifas
industriais e serviços. O que,
aliás, está acontecendo. Já houve redução unilateral de tarifas
no Brasil, o que foi bom para a
economia do país.
FOLHA - O que a economia do Brasil e do mundo ganhariam com uma
conclusão positiva da Rodada Doha?
LAMY - Crescimento. Portanto
um potencial para mais bem-estar social e redução da pobreza. O que acontece dentro dos
países está além do alcance da
OMC, mas o aumento do comércio internacional cria o potencial de reduzir as desigualdades, que no Brasil continuam
sendo um problema.
FOLHA - Como o sr. vê a perspectiva de crescimento do comércio em
2008, sobretudo diante de desequilíbrios causados por fatores como a
desvalorização do dólar?
LAMY - A OMC não está no negócio de curto prazo. Nosso período de tempo é de 15 anos,
que é o espaço entre duas rodadas de negociação comercial. E
nesse tempo valorizações cambiais se igualam. É como sair
com o cachorro. Durante o passeio, o cachorro algumas vezes
está na frente, em outras está
atrás. Uns andam com o cachorro na coleira, outros não.
Alguns têm uma coleira longa,
outros curta. Isso não muda o
fato de que cão e dono sempre
voltam juntos para casa.
FOLHA - O sr. já disse que o protecionismo no comércio foi uma das
origens da Segunda Guerra Mundial. O mesmo problema poderia levar hoje a turbulências políticas?
LAMY - Sim, há sempre um risco de que a sensação de desproteção de um país degenere em
protecionismo econômico. A
proteção é uma necessidade
humana. Quando surge um
problema, apontar para o estrangeiro é sempre a saída mais
fácil. Por isso o protecionismo é
sempre uma tentação.
FOLHA - Quais as contradições vividas por um socialista no comando
do órgão que é o árbitro do capitalismo global?
LAMY - A relação com o capitalismo de mercado é uma grande
questão do movimento socialista desde o começo do século
19. Mas, se olho para os socialistas e os social-democratas, concluo que estou em boa companhia. Vejo que Brasil, Chile, Nova Zelândia e Reino Unido, com
governos socialistas ou social-democratas, também defendem a abertura comercial.
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