São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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ENTREVISTA
PASCAL LAMY


Poder dos emergentes deve ser reconhecido

Diretor-geral da OMC afirma que maior força desses países cria um equilíbrio nas relações internacionais

Max Rossi - 15.nov.07/Reuters
Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, durante congresso em Roma


O SOCIALISTA que comanda o organismo considerado uma espécie de juiz do capitalismo global vê com bons olhos o poder conquistado nos últimos anos por países emergentes como o Brasil -e que está criando um novo equilíbrio de forças nas relações internacionais.
Para o francês Pascal Lamy, diretor-geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), essa é uma realidade irreversível. Ele deixa claro, por exemplo, que considera só uma questão de tempo a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, uma das metas da diplomacia do governo Lula.

 

MARCELO NINIO
DE GENEBRA

Em entrevista à Folha em seu gabinete na imponente sede da OMC, às margens do lago Léman, em Genebra, Lamy elogiou a estratégia comercial brasileira e mostrou confiança de que a desacreditada Rodada Doha finalmente tenha um desfecho positivo em 2008. Mas lembrou aos brasileiros que, com o poder, aumenta também a responsabilidade. Em sua opinião, não há nenhuma contradição entre ser socialista e estar no topo de uma organização demonizada por grupos esquerdistas e antiglobalização. "Estou em boa companhia", diz Lamy, citando governos considerados de esquerda, como os do Brasil e do Chile, que também defendem a abertura do comércio. Lamy, 60, chegou ao comando da OMC em 2005, depois de derrotar, entre outros candidatos ao cargo, o brasileiro Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Formado em administração e estudos políticos, teve longa trajetória no serviço público francês, chegando a assessor do premiê Pierre Mauroy. Também fez carreira na União Européia. Primeiro, como chefe-de-gabinete do presidente da Comissão Européia, Jacques Delors. Depois, como comissário europeu de Comércio. Entre os dois cargos, chefiou a equipe que recuperou o banco francês Crédit Lyonnais, onde atuou como presidente até sua privatização, em 1999. Leia a seguir trechos de entrevista à Folha.  

FOLHA - Mais um ano termina com a Rodada Doha em um impasse. O que deu errado e o que o sr. espera para 2008?
PASCAL LAMY -
Não considero um impasse. A negociação continua. O nível de atividade neste momento na OMC é bem mais alto do que era no ano passado. Em 2007, nós tivemos boas e más notícias. A má foi o colapso do processo do G4 em Potsdam [na Alemanha]. Mas a boa notícia é que foi aberta uma nova avenida para avançar a negociação, que é voltar para o plenário e aos chefes dos comitês. Todos sabem que negociações entre 151 países são muito complexas, mas estamos chegando ao estágio final. Minha sensação é que poderemos terminar toda a Rodada Doha em 2008. Essa é um determinação compartilhada por todos os membros da organização.

FOLHA - Recentemente, o sr. propôs um calendário para que as negociações sejam concluídas até o fim de 2008. Como esse calendário será afetado pelo fato de que na Casa Branca estará um presidente no último ano de mandato?
LAMY -
Meu papel é dar uma moldura ao processo. Não propus prazos finais. Os Estados Unidos são um país importante, mas há eleições em vários lugares o tempo todo, temos de conviver com esses ciclos. O fato de estarmos no fim de um governo [nos EUA] é positivo, até porque as pessoas gostam de deixar uma ficha limpa para a história. A verdade é que o comércio internacional tem hoje papel mais relevante na política doméstica do que há 50 anos. O mundo mudou e, na minha opinião, para melhor. O comércio, enquanto transmissor da globalização, tem grande impacto na vida das pessoas.

FOLHA - Quais as lições da Conferência de Bali para a Rodada Doha? Se o mundo não consegue ir além de um acordo vago sobre um tema em que o objetivo coletivo é claro, como o ambiente, como esperar consenso em um processo com interesses tão diversos, como o comércio?
LAMY -
Chegar a um acordo sobre mudança climática é mais difícil que concluir a Rodada Doha. Bilhões em subsídios ou toneladas de frango ou porco são mercadorias mais fáceis de lidar do que emissões de CO2.
Mas há coisas em comum. Primeiro, há um bem público com que nos preocupar. O seguro contra o protecionismo apoiado pela OMC é um bem comum. Só que o bem público tem um histórico mais longo em comércio, pois estamos nesse negócio há 60 anos, enquanto o tema da mudança climática é mais recente. Em segundo lugar, há o equilíbrio de forças nas negociações, que mudou fundamentalmente nos últimos 50 anos. Antes, era basicamente uma negociação entre o Norte rico e o Sul pobre. Hoje, a situação mudou totalmente. Temos potências emergentes, que querem sua parte do bolo e do processo de tomada de decisões. Não que Brasil e Índia não participassem antes das negociações comerciais.
Mas seu envolvimento e sua capacidade de direcionar a agenda eram muito menores. Se a agricultura é o assunto "número 1" da atual negociação, não é porque Estados Unidos, União Européia e Japão gostam, mas porque os países emergentes impuseram isso na agenda. No caso da mudança climática, há o mesmo dilema da nova realidade, que é o reequilíbrio em volta da mesa de negociações, o que também se vê no Banco Mundial e no FMI [Fundo Monetário Internacional]. Acontece o mesmo nas discussões sobre [a reforma do] Conselho de Segurança da ONU. O mesmo problema: uma velha estrutura, que está lá há 60 anos e não cabe na realidade de hoje. E não se pode pedir a países como Brasil, Índia ou China que assumam compromissos em relação ao clima se eles não são parte do jogo.

FOLHA - Como as preocupações ambientais deveriam ser incluídas nas negociações comerciais? O álcool, por exemplo, deveria ser considerado uma categoria especial?
LAMY -
A noção de que o comércio deve contribuir para o desenvolvimento sustentável é um princípio da OMC. O álcool é parte da negociação agrícola. Há a convicção de que deveríamos fazer mais para promover os bens ambientais. Agora, o que é exatamente um bem ambiental continua uma questão aberta. Isso é verdade tanto para máquinas de lavar e bicicletas como para o álcool.

FOLHA - Os países ricos, ao que parece, estão custando a se adaptar ao novo equilíbrio de poder. O que o sr. achou da declaração da secretária do Comércio dos Estados Unidos, Susan Schwab, comparando Brasil e Índia a adolescentes?
LAMY -
É uma realidade e é um reflexo da mudança no equilíbrio de forças. Eu não usaria essa frase, pois parece algo como "eu sou um adulto e você é um adolescente". Os países emergentes estão absolutamente certos e têm toda a legitimidade em querer reequilibrar o mundo da agricultura, assim como estavam certos em relação a têxteis na primeira Rodada. Estão certos, mas têm de pagar um preço. Ser participante ativo significa ganhar direitos, mas também ter responsabilidades.

FOLHA - Há quem critique o Brasil por exigir privilégios de país pobre enquanto reivindica poderes de país rico. Como conciliar isso?
LAMY -
É fato que países como Brasil, Índia, África do Sul e Indonésia continuam pobres, já que a porcentagem da população que vive com US$ 2 por dia ainda é muito alta, Mas também é verdade que estão muito mais poderosos. E todos escolheram a mesma avenida para o desenvolvimento, que é a integração no comércio internacional. São países com grandes vantagens comparativas e querem usá-las. Ser pobre e poderoso é a nova realidade do mundo de hoje. Por mim, está ótimo, sou um social-democrata. Não tenho objeção a que os pobres tenham mais poder de negociação.

FOLHA - Como o sr. vê a estratégia do Brasil nas negociações de Doha?
LAMY -
É muito bem construída, pois combina a dimensão geopolítica com as vantagens comparativas do Brasil, notadamente na agricultura. Claro, se você pode matar dois pássaros com uma pedra, ou seja, ser uma força de transformação geopolítica e ainda conseguir seus objetivos, por que não? É uma estratégia inteligente, enquadra-se nos interesses macroeconômicos do Brasil e tem sido extremamente bem-sucedida nos últimos anos. Basta olharmos para o comércio, o superávit comercial, os indicadores macroeconômicos, a inflação, o valor da moeda. A moeda brasileira dobrou de valor em relação ao dólar nos últimos cinco anos. A noção de que abrir [os mercados] é bom funciona, mas funciona ainda melhor se você equaliza o campo de ação, o que é a posição básica do Brasil em agricultura. Acho que é muito eficiente. Acredito que o presidente Lula e o ministro [das Relações Exteriores, Celso] Amorim queiram concluir a Rodada, já que moveram a negociação de uma forma boa para o Brasil.

FOLHA - Em que o Brasil poderia ser mais flexível?
LAMY -
Em temas como tarifas industriais e serviços. O que, aliás, está acontecendo. Já houve redução unilateral de tarifas no Brasil, o que foi bom para a economia do país.

FOLHA - O que a economia do Brasil e do mundo ganhariam com uma conclusão positiva da Rodada Doha?
LAMY -
Crescimento. Portanto um potencial para mais bem-estar social e redução da pobreza. O que acontece dentro dos países está além do alcance da OMC, mas o aumento do comércio internacional cria o potencial de reduzir as desigualdades, que no Brasil continuam sendo um problema.

FOLHA - Como o sr. vê a perspectiva de crescimento do comércio em 2008, sobretudo diante de desequilíbrios causados por fatores como a desvalorização do dólar?
LAMY -
A OMC não está no negócio de curto prazo. Nosso período de tempo é de 15 anos, que é o espaço entre duas rodadas de negociação comercial. E nesse tempo valorizações cambiais se igualam. É como sair com o cachorro. Durante o passeio, o cachorro algumas vezes está na frente, em outras está atrás. Uns andam com o cachorro na coleira, outros não. Alguns têm uma coleira longa, outros curta. Isso não muda o fato de que cão e dono sempre voltam juntos para casa.

FOLHA - O sr. já disse que o protecionismo no comércio foi uma das origens da Segunda Guerra Mundial. O mesmo problema poderia levar hoje a turbulências políticas?
LAMY -
Sim, há sempre um risco de que a sensação de desproteção de um país degenere em protecionismo econômico. A proteção é uma necessidade humana. Quando surge um problema, apontar para o estrangeiro é sempre a saída mais fácil. Por isso o protecionismo é sempre uma tentação.

FOLHA - Quais as contradições vividas por um socialista no comando do órgão que é o árbitro do capitalismo global?
LAMY -
A relação com o capitalismo de mercado é uma grande questão do movimento socialista desde o começo do século 19. Mas, se olho para os socialistas e os social-democratas, concluo que estou em boa companhia. Vejo que Brasil, Chile, Nova Zelândia e Reino Unido, com governos socialistas ou social-democratas, também defendem a abertura comercial.


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