São Paulo, quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

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ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Homens de pouca fé


O aumento do investimento só pode se materializar tendo como contrapartida a elevação do deficit externo

ENTRE AS obsessões já conhecidas pelos 17 leitores, a Síndrome do Deficit de Atenção aos Dados (SinBad), doença que atinge com especial intensidade nossos keynesianos de quermesse, ocupa lugar de honra. A capacidade de certos economistas pátrios de ignorar a evidência empírica, em particular se essa refuta suas teses, chega às raias do lendário.
No entanto, durante uma cerimônia de batismo no fim de semana passado, tive uma epifania: o padre, discorrendo sobre fé e ciência, lembrou que só a segunda requer evidência; a primeira não apenas a dispensa como faz questão de desafiá-la. "Credo quia absurdum est" (creio porque é absurdo) poderia ser o lema dos keynesianos de quermesse, caso se decida que a SinBad deixe de ser considerada doença, passando à categoria de religião. Faria sentido: só mesmo o profundo sentimento religioso é capaz de explicar como é possível citar os números para defender o oposto do que os próprios dados dizem. Por exemplo, as contas nacionais divulgadas há duas semanas mostraram forte recuperação do investimento, que teria crescido 6,5% no terceiro trimestre ante o segundo. Trata-se de número bastante positivo, ainda mais porque se segue à expansão de 2% no segundo trimestre. Dessa forma, o investimento no terceiro trimestre atingiu pouco menos de 18% do PIB, nada brilhante, mas, ainda assim, bem melhor que os parcos 16% do PIB registrados no trimestre anterior.
Esse desempenho contradiz frontalmente as "análises" dos keynesianos de quermesse. Os mesmos que diziam "existir evidências de que a apreciação da taxa real de câmbio está tendo um impacto negativo sobre as decisões de investimento, não apenas dos setores exportadores, mas também dos setores voltados para o atendimento do mercado doméstico", agora celebram o comportamento do investimento, aparentemente esquecidos do que disseram antes, a ponto de reafirmá-las veementemente, a despeito da evidência em contrário. Errarão de novo.
De fato, voltando ao tópico que expus há algumas semanas, para conciliar a expansão da demanda interna com a capacidade de crescimento da oferta local, é necessário complementar a segunda pelo aumento das importações líquidas. Ou, de modo equivalente, dada a poupança bruta pouco superior a 15% do PIB, o aumento do investimento só pode se materializar tendo como contrapartida a elevação do deficit externo, ou a redução do consumo do governo.
Contudo, no último ano a taxa de poupança caiu o equivalente a 3% do PIB, enquanto o consumo público (sem contar as transferências) subiu pouco mais de 1% do PIB, atingindo seu maior valor desde 2002 (20,6% do PIB). Assim, na falta do necessário ajuste fiscal, só resta a alternativa externa e, com ela, a apreciação da taxa real de câmbio.
Posto de outra forma, o câmbio real mais forte é a solução para o problema colocado pela expansão do investimento num contexto de baixa poupança que, em parte ao menos, resulta da incapacidade do setor público de controlar suas despesas. Obviamente, quem professa a SinBad pode dispensar as evidências e declarar sua crença na Doutrina da Transferência Imaculada, mas nós, homens de pouca fé, continuaremos, como Tomé, a exigir a evidência empírica. Pode não garantir o Paraíso, mas ajuda um bocado quem vive no plano terrestre.
E, aproveitando o tema, votos de Feliz Natal (e Hanukah!) e um próspero 2010 a todos, em especial para Reynaldo Fernandes, que sai do serviço público após contribuição inestimável para a educação no Brasil.


ALEXANDRE SCHWARTSMAN , 46, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

Internet: http://www.maovisivel.blogspot.com/

alexandre.schwartsman@hotmail.com


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