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OPINIÃO ECONÔMICA
Papai Noel
JOÃO SAYAD
Brasileiros com menos de
quatro anos comportam-se
bem durante o ano para ganhar
presentes do Papai Noel. Papai
Noel não existe. Adão e Eva nunca existiram. Mas os cristãos carregam a culpa do pecado original.
Édipo nunca existiu. De qualquer
forma, somos escravos do destino.
Eva, Édipo e são Nicolau são
mitos. O dinheiro é um mito: não
custa nada, mas tem valor, como
o santinho de papel adorado pelo
devoto.
Quando todos querem descobrir a verdade sobre o dinheiro
-o poder de compra- ao acompanhar todos os meses a inflação
medida pela FGV ou pela Fipe, a
inflação se acelera. No limite,
quando todos os preços estão indexados, a verdade aparece, o dinheiro deixa de ser dinheiro e mito. Instala-se a superinflação. Os
brasileiros adultos em junho de
1994 sabem do que estou falando.
Dinheiro é a regra mítica do jogo da economia: todos trabalham
para ganhar dinheiro. O homem
pobre que trabalha muito e ganha pouco corre sem saber atrás
de um mito, como a criança que
come espinafre para ganhar presentes no fim do ano. O homem
rico, prático e calculista, sem tempo para filosofias, é escravo do
mesmo mito.
Entre 1870 e 1914, no período
dourado do padrão-ouro, o dinheiro representava uma determinada quantidade de ouro em
reserva nos bancos centrais e podia ser convertido no metal. Sempre que a conversão de dinheiro
inglês, francês ou alemão em ouro
ameaçava a estabilidade, os bancos centrais de outros países emprestavam ouro para garantir o
valor da moeda ameaçada. Porque, de fato, não havia o ouro suficiente para permitir a conversão
do dinheiro em circulação.
A "credibilidade" -ou melhor,
a crença de que o dinheiro valia
ouro- era restabelecida, e a
ameaça de conversão desaparecia. A regra de Bagehot (genro do
fundador da revista "The Economist" e depois editor da mesma
revista), "descontar, sempre descontar" -isto é, emprestar mais
em caso de falta de credibilidade-, foi o segredo do sucesso do
padrão-ouro.
Em 1973, a economia brasileira
era muito indexada. O Índice Geral de Preços era calculado a partir de preços coletados no Rio de
Janeiro. Se o preço do tomate estivesse pressionando a taxa de inflação medida no Rio, o governo
militar mandava os atacadistas
inundar o Rio de tomates. A oposição descobriu a farsa. A intervenção no mercado atacadista de
tomates do Rio virou um escândalo.
Do ponto de vista do interesse
público, era melhor combater a
inflação pelo controle da oferta de
tomates no Rio do que elevar a taxa de juros, quebrar empresas e
gerar desemprego, o que, aliás,
não reduziria o preço do tomate
nem a inflação medida pelo IGP.
Mas a opinião pública não pode
descobrir, assim como os ingleses
de casaca e cartola não podiam
saber que o ouro que lastreava a
sua moeda era o mesmo ouro que
lastreava a moeda francesa e a
alemã. Como o mesmo Papai
Noel que na noite de Natal desce,
ao mesmo tempo, por chaminés
do mundo inteiro.
O regime de metas de inflação,
como todos os regimes monetários, é um mito. Para garantir a
estabilidade do valor do dinheiro,
o Banco Central fixa taxas de juros de acordo com um modelo
econométrico. O ouro foi substituído por três equações que medem quanto será a inflação para
cada nível fixado de juros. O mito
é que, com juros altos, as pessoas
compram dívida pública, ficam
com menos dinheiro e, assim, os
preços não sobem.
Mas a dívida pública brasileira
é um ativo financeiro de prazo
curto (64% vencem em menos de
dois anos, e 40%, em menos de
um ano), indexado à taxa de juros do dia (51% rendem a taxa
Selic) e de alta liquidez. É ativo financeiro tão parecido com o dinheiro quanto a manteiga é parecida com a margarina.
(No princípio, a margarina aspirava ser manteiga. Hoje, com
medo do colesterol, a manteiga
saborosa aspira ser margarina
saudável. No princípio, em 1965,
os compradores de dívida pública
só aceitavam comprar a dívida se
fosse líquida como o dinheiro. O
Banco Central vendia títulos com
a garantia de que, se o portador
quisesse, ele compraria de volta.
Transformou a dívida pública em
dinheiro, que rende bons juros.
Hoje, é o dinheiro que aspira ser
dívida pública, isto é, ter liquidez
e, ao mesmo tempo, render juros.)
Mito: a inflação caiu abaixo de
20% em 1973 porque o IGP mediu
uma inflação menor do que 20%.
Realidade: o governo vendeu tomates no Rio de Janeiro. A inflação caiu.
Mito: a taxa de juros reduz a liquidez e o nível de atividade da
economia. A inflação cai. Realidade: a taxa de juros não reduz a
liquidez, embora reduza a taxa
de câmbio. Por isso a inflação cai.
Mito: o superávit primário é suficiente para pagar juros tão altos.
Realidade: a dívida pública continua crescendo.
Conclusão: Papai Noel é um
bom mito desde que os pais não
acreditem nele; o padrão-ouro foi
um bom regime, quando os bancos centrais sabem que o dinheiro
não pode ser convertido em ouro;
o regime de metas de inflação é
um bom regime, desde que todos
acreditem no regime das três
equações, menos o BC.
Na semana passada, o Banco
Central errou e revelou a verdade:
manteve os juros altos porque teme a volatilidade da taxa cambial, que causaria inflação. Deu
para ver que a barba do Papai
Noel era postiça: a meta é a taxa
cambial, e não a inflação. É um
escândalo: teria sido melhor acumular reservas no ano passado
para estabilizar o câmbio do que
fixar juros que não conseguimos
pagar. A decisão custou R$ 2 bilhões.
João Sayad, 57, economista, é professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net
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