São Paulo, segunda-feira, 24 de maio de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Papai Noel

JOÃO SAYAD

Brasileiros com menos de quatro anos comportam-se bem durante o ano para ganhar presentes do Papai Noel. Papai Noel não existe. Adão e Eva nunca existiram. Mas os cristãos carregam a culpa do pecado original. Édipo nunca existiu. De qualquer forma, somos escravos do destino.
Eva, Édipo e são Nicolau são mitos. O dinheiro é um mito: não custa nada, mas tem valor, como o santinho de papel adorado pelo devoto.
Quando todos querem descobrir a verdade sobre o dinheiro -o poder de compra- ao acompanhar todos os meses a inflação medida pela FGV ou pela Fipe, a inflação se acelera. No limite, quando todos os preços estão indexados, a verdade aparece, o dinheiro deixa de ser dinheiro e mito. Instala-se a superinflação. Os brasileiros adultos em junho de 1994 sabem do que estou falando.
Dinheiro é a regra mítica do jogo da economia: todos trabalham para ganhar dinheiro. O homem pobre que trabalha muito e ganha pouco corre sem saber atrás de um mito, como a criança que come espinafre para ganhar presentes no fim do ano. O homem rico, prático e calculista, sem tempo para filosofias, é escravo do mesmo mito.
Entre 1870 e 1914, no período dourado do padrão-ouro, o dinheiro representava uma determinada quantidade de ouro em reserva nos bancos centrais e podia ser convertido no metal. Sempre que a conversão de dinheiro inglês, francês ou alemão em ouro ameaçava a estabilidade, os bancos centrais de outros países emprestavam ouro para garantir o valor da moeda ameaçada. Porque, de fato, não havia o ouro suficiente para permitir a conversão do dinheiro em circulação.
A "credibilidade" -ou melhor, a crença de que o dinheiro valia ouro- era restabelecida, e a ameaça de conversão desaparecia. A regra de Bagehot (genro do fundador da revista "The Economist" e depois editor da mesma revista), "descontar, sempre descontar" -isto é, emprestar mais em caso de falta de credibilidade-, foi o segredo do sucesso do padrão-ouro.
Em 1973, a economia brasileira era muito indexada. O Índice Geral de Preços era calculado a partir de preços coletados no Rio de Janeiro. Se o preço do tomate estivesse pressionando a taxa de inflação medida no Rio, o governo militar mandava os atacadistas inundar o Rio de tomates. A oposição descobriu a farsa. A intervenção no mercado atacadista de tomates do Rio virou um escândalo.
Do ponto de vista do interesse público, era melhor combater a inflação pelo controle da oferta de tomates no Rio do que elevar a taxa de juros, quebrar empresas e gerar desemprego, o que, aliás, não reduziria o preço do tomate nem a inflação medida pelo IGP. Mas a opinião pública não pode descobrir, assim como os ingleses de casaca e cartola não podiam saber que o ouro que lastreava a sua moeda era o mesmo ouro que lastreava a moeda francesa e a alemã. Como o mesmo Papai Noel que na noite de Natal desce, ao mesmo tempo, por chaminés do mundo inteiro.
O regime de metas de inflação, como todos os regimes monetários, é um mito. Para garantir a estabilidade do valor do dinheiro, o Banco Central fixa taxas de juros de acordo com um modelo econométrico. O ouro foi substituído por três equações que medem quanto será a inflação para cada nível fixado de juros. O mito é que, com juros altos, as pessoas compram dívida pública, ficam com menos dinheiro e, assim, os preços não sobem.
Mas a dívida pública brasileira é um ativo financeiro de prazo curto (64% vencem em menos de dois anos, e 40%, em menos de um ano), indexado à taxa de juros do dia (51% rendem a taxa Selic) e de alta liquidez. É ativo financeiro tão parecido com o dinheiro quanto a manteiga é parecida com a margarina.
(No princípio, a margarina aspirava ser manteiga. Hoje, com medo do colesterol, a manteiga saborosa aspira ser margarina saudável. No princípio, em 1965, os compradores de dívida pública só aceitavam comprar a dívida se fosse líquida como o dinheiro. O Banco Central vendia títulos com a garantia de que, se o portador quisesse, ele compraria de volta. Transformou a dívida pública em dinheiro, que rende bons juros. Hoje, é o dinheiro que aspira ser dívida pública, isto é, ter liquidez e, ao mesmo tempo, render juros.)
Mito: a inflação caiu abaixo de 20% em 1973 porque o IGP mediu uma inflação menor do que 20%. Realidade: o governo vendeu tomates no Rio de Janeiro. A inflação caiu.
Mito: a taxa de juros reduz a liquidez e o nível de atividade da economia. A inflação cai. Realidade: a taxa de juros não reduz a liquidez, embora reduza a taxa de câmbio. Por isso a inflação cai. Mito: o superávit primário é suficiente para pagar juros tão altos. Realidade: a dívida pública continua crescendo.
Conclusão: Papai Noel é um bom mito desde que os pais não acreditem nele; o padrão-ouro foi um bom regime, quando os bancos centrais sabem que o dinheiro não pode ser convertido em ouro; o regime de metas de inflação é um bom regime, desde que todos acreditem no regime das três equações, menos o BC.
Na semana passada, o Banco Central errou e revelou a verdade: manteve os juros altos porque teme a volatilidade da taxa cambial, que causaria inflação. Deu para ver que a barba do Papai Noel era postiça: a meta é a taxa cambial, e não a inflação. É um escândalo: teria sido melhor acumular reservas no ano passado para estabilizar o câmbio do que fixar juros que não conseguimos pagar. A decisão custou R$ 2 bilhões.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


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