São Paulo, quarta-feira, 24 de julho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um mundo péssimo

PAULO RABELLO DE CASTRO

Para quem achava plausível que a recuperação da economia mundial, na esteira da pujança americana, se daria, no mais tardar, no início deste segundo semestre de 2002, a sensação de perplexidade e desconforto deve ser muito forte!
Com as quedas espetaculares dos últimos dias, as Bolsas americanas, européias e asiáticas nos remetem aos cenários horrorosos das crises de confiança de 1997 e 1998, com a diferença fundamental de que, agora, não seriam apenas a marola e os respingos de uma crise na Ásia emergente ou na Rússia, afetando alguns corretores de Nova York. Será que as crises na própria economia-líder, os EUA, e adjetivamente na Alemanha e no Japão não teriam contornos diferentes e muito mais graves? A resposta a essa pergunta interessa, obviamente, a todos os investidores, mas também aos brasileiros, em geral, que já padecem da debilidade da economia brasileira num mar revolto em que, além do mais, haverá troca de capitão do navio, timoneiro, navegador, enfim, de toda a tripulação...
De lambuja aos crônicos problemas internos, o próximo governo do Brasil herdará um mundo péssimo. "Um mundo péssimo" foi a chamada editorial ao inteligente artigo-resumo produzido pelo percuciente Clóvis Rossi -colunista desta Folha- em referência ao debate havido na casa, há exatas duas semanas.
Um dos debatedores lembrou, naquele dia, que o próximo presidente herdaria "um mundo que está mal e vai ficar péssimo", embora ressalvando: "Não é o fim do capitalismo, mas é o fim do hiperendividamento norte-americano". Pois é, não deu nem tempo de amadurecer a breve profecia e o mundo parece se desmanchar. A velocidade dos acontecimentos parece caracterizar nossa época. Mas nem tanto. O ajuste do endividamento empresarial e familiar norte-americano está estampado e é devido desde o final dos anos 90. Com sua polêmica capacidade de adiar fatos irreversíveis, o "mago" Alan Greenspan tem feito das tripas coração para introduzir o novíssimo conceito de "parto sem dor" ou de "ajustes sem custos" na economia pós-moderna. Numa sequência formidável de reduções de juros, até o nível recorde (de baixa) de 1,75% ao ano, o Fed (banco central norte-americano) tem conseguido fazer o camelo passar pelo buraco da agulha, ao reduzir muito gradual e lentamente o consumo dos endividados americanos ao nível de suas reais possibilidades, pondo fim a quase uma década de trepidantes gastos das empresas e das famílias nos EUA -justamente a relaxante e gostosa era Clinton.
Coincidentemente à saída do louro brilhante, Greenspan já não tem mais para onde correr, os juros já vieram ao solo, até atrasando o ajuste que realmente interessa da balança externa dos EUA (o déficit comercial de bens e serviços, projetado para mais de 5% do PIB americano). Daí a queda (afinal) da cotação do dólar ante o euro e o início do que será, ao longo dos próximos meses, estendendo-se a 2003, o penoso percurso de retorno dos orçamentos familiares nos EUA ao tamanho de suas respectivas carteiras, e das empresas, a seus efetivos limites de endividamento.
E, por falar em carteiras, a perda na da maior nação investidora em Bolsa dá uma dimensão do ajuste de consumo que ainda está por vir...
Que dimensão econômica, que recado para nós essa situação delicada lá fora nos indica e aponta? O caminho da defesa financeira redobrada e reforçada. Nessa verdadeira "salada de legumes" em que se transformou o debate na corrida presidencial, na expressão feliz e insuperável de Fernando Pedreira ("O Globo", 21/ 07/02), não é de esperar que os candidatos berinjela, pimentão, abobrinha ou chuchu tratem de questões fundamentais. Pois, se o fizessem, estariam abandonando uma secular tradição brasileira de candidato só discutir o que agrada ao eleitor! Contudo, no dia 2 de janeiro de 2003, o novo capitão do navio terá de se perguntar onde estão suas defesas financeiras para navegar os primeiros meses de grande turbulência e os anos à frente, conduzindo o barco do Brasil a águas menos borrascosas do que as que vêm destruindo a pobre nação argentina.
Respostas do tipo "que venha o FMI (e que venha logo)" não prestam; são puro veneno para adocicar os esforços necessários da tripulação e o perfeito entendimento e cooperação que se precisa extrair de todos os passageiros, para superarmos a situação limite de risco à qual nos deixamos aproximar tão perigosamente! O FMI só tem mais empréstimos para nos fornecer. Será que os investidores confiarão em nós ainda mais endividados? A Argentina "morreu" depois de aprovado um último empréstimo bilionário pelo FMI e, meses antes, uma "megacanje", megatroca de títulos de US$ 29 bilhões! A defesa financeira de um país se faz diminuindo, e não aumentando, o seu grau de exposição aos financiamentos externos. O FMI, nos próximos meses e anos, pode ser, no máximo, o discreto interlocutor externo de um Brasil que paga suas contas em dia e encontra o caminho, com suas próprias pernas, de financiar sem crescimento (tão insuficiente hoje) pelo esforço de maior poupança interna, o que exigirá uma guerra à gastança pública, proposta hoje inaudível por qualquer candidato presidencial...
Não importa. É o que terá de ser feito pelo "Brasil-que-der-certo". Para o outro Brasil, o perdido em si mesmo, qualquer outro caminho serve, como diria Alice no País das Maravilhas.
Mas, se nesse mundo péssimo, o Brasil conseguir dar o exemplo de emergir da crise, tratando da sua defesa financeira, por conta própria, e reafirmando a si mesmo e a seus instáveis credores a capacidade de autogerenciamento tantas vezes posta em dúvida por nossos críticos daqui e lá de fora, aí, sim, poderemos dizer que a instável estabilização da era FHC terá se convertido num bem-sucedido caso de "crescimento com estabilidade".


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - paulo@rcconsultores.com.br


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