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ENTREVISTA
ELIANA TRANCHESI
Estou como criança deixando a Disney abruptamente
Dona da Daslu, maior butique de luxo do país, conta como a crise nos negócios e a descoberta de um câncer a fizeram "cair na real'
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
No dia 23 de agosto passado o médico Bernardino Tranchesi insistiu para que Eliana Tranchesi, 50, sua ex-mulher, fizesse
exames para saber se o estresse provocado pelas turbulências comerciais da Daslu não lhe teriam afetado a saúde. Até então, ela se sentia bem e
disposta. Desdenhou as recomendações, mas, para
não contrariar o ex-marido, acabou se submetendo a
uma bateria de exames. Rapidamente descobriu um
câncer no pulmão. "A crise da Daslu e mais o câncer
me fizeram sentir como se eu fosse uma criança deixando abruptamente a Disney. Até então, eu imaginava a vida como uma grande brincadeira." A Daslu é,
em essência, segundo ela, a sua versão adulta para a
Disney. De badalada empresária de sucesso, Eliana
passou a conviver com as acusações de sonegação de
impostos e até de insensibilidade social, foi detida para depoimentos na polícia, viu seu irmão, algemado,
ser conduzido à prisão e tornou-se foco de rumores de
que seu negócio quebraria. "Caí na real." Nesta entrevista concedida à Folha, ela conta como está enfrentando a doença e se mostra otimista, dizendo que,
depois das sessões de quimioterapia e de radioterapia, tudo voltará ao normal. Também revela como
foi o drama familiar por causa das operações contra
a Daslu -"sou uma vítima"-, as dificuldades comerciais da empresa e reconhece que deveria estar
mais preparada para saber lidar com questões administrativas, para as quais afirma nunca ter dado
muita atenção. Comentou que, se pudesse voltar
atrás, além de Disney, deveria ter feito sua vida "um
pouco mais com Wall Street e Harvard". A empresária afirma que, com todos esses episódios, perdeu a
"ingenuidade" e está mais desconfiada. E que está
aprendendo o valor das coisas simples, como a luz
do sol batendo nas flores ou um pássaro bebendo
água em seu jardim.
FOLHA - O que exatamente está
acontecendo com a sua saúde?
ELIANA TRANCHESI - Tirei um tumor que eu tinha no pulmão esquerdo. Além da retirada do tumor, eles [os médicos] estão fazendo um tratamento combinado de quimioterapia e radioterapia, porque chegaram à
conclusão de que é o mais eficaz para não ter reincidência da
doença. Serão mais 45 dias,
com 34 aplicações. É uma parada na vida.
FOLHA - Como descobriu?
TRANCHESI - O Bernardino
[Tranchesi, médico, ex-marido] me conhece muito bem e
desconfia de que, com todos os
episódios da Daslu, eu poderia
desenvolver alguma doença
por causa de tamanha carga de
estresse. Sabe o que aquele baque todo foi para mim, porque
me conhece desde os 15 anos e
sabe que eu sou muito controlada. Não sou de gritar, não perco o prumo. Então, achou que, em algum momento, eu ia somatizar. Resolvemos que, só
para descartar qualquer coisa,
eu faria um exame. Fui fazer esse exame numa clínica que, por
coincidência, toda vez em que
passava na frente, eu fazia o sinal da cruz.
FOLHA - Como se sentia?
TRANCHESI - Despreocupadérrima, só estava satisfazendo a
vontade do Bernardino. O médico disse que algo estava errado no pulmão. Poderia ser uma
tuberculose, um fungo ou um
tumor. Aí comecei a ficar preocupada. Logo de manhã estava
de novo fazendo exames, quando já comecei a me sentir meio
doente. Você lá vê todo mundo
de peruquinha. Está todo mundo fazendo exame, cada um fica
contando o seu caso.
FOLHA - Qual foi sua reação com o
resultado?
TRANCHESI - A crise da Daslu e
mais o câncer me fizeram sentir como se eu fosse uma criança deixando abruptamente a
Disney. Até então, eu imaginava a vida como uma grande
brincadeira. Senti que, até
aquele momento, eu vivia da
Disney e que isso podia acabar.
Vida, para mim, é busca da alegria. A Daslu é a Disney, onde
tudo é lindo, as vendedoras são
lindas, o cabelo é lindo, a roupa
é linda, é tudo bonito. É tudo
agradável. Então, de repente,
você sai desse mundo da Disney e cai lá dentro do [hospital
Albert] Einstein já com um
monte de pacientes com câncer. Nesses últimos 30 anos de
trabalho, tirando o episódio policial, foi muito esforço, mas tudo com jeito de brincadeira. A
minha vida profissional foi um
sucesso, a Daslu era matéria
nas principais revistas de moda
do mundo. Tudo isso depois de
um começo simples, apenas
vendendo roupa para amigas
na casa de minha mãe.
FOLHA - Como você está reagindo
ao tratamento?
TRANCHESI - Há dias em que eu
não consigo falar. É uma coisa,
uma fraqueza que eu nunca tinha sentido. É mais do que você
ter corrido uma maratona. Saúde é uma coisa que a gente não
tem noção até faltar.
FOLHA - Até que ponto você imagina que exista uma relação com o tumor? Você fumava?
TRANCHESI - Não fumava havia
15 anos. Fumei muito pouco.
Não sei dizer se há relação entre todo esse estresse e o câncer; só posso dizer que nunca
sofri tanto. De repente, de Disney só lembrava dos trechos de
histórias de terror. Poucos meses depois do episódio da Daslu,
meu pai, que já estava bem velho, morreu. Seus últimos meses foram de constrangimento
por ver o nome da família daquele jeito no jornal. Sentia
uma pena ao pensar nele. Ele
me recortava tudo o que saía no
jornal e não se conformava que
eu não podia ligar para o jornalista e falar que eu não era aquela pessoa que eles estavam colocando. "Pai, é assim, não dá,
saiu, saiu, não adianta ler tudo e
ficar aborrecido." "Não, mas
não é possível que você não
possa telefonar para a pessoa e
explicar? Vou escrever uma
carta." Ah, coitado, ele lia tudo,
recortava tudo. Meu irmão Antonio Carlos [Piva de Albuquerque, um dos diretores da Daslu]
foi preso, levado algemado para
a prisão e teve uma profunda
depressão. Saiu de lá e foi internado numa clínica.
FOLHA - Como seus filhos reagiram?
TRANCHESI - Eu tinha medo da
reação deles. Quando fui levada
para prestar depoimento, os filhos é que sempre vinham à cabeça. Eu lembrava que, uma
vez, tinha comentado sobre
uma fábrica de sapatos que não
dava nota [fiscal]. Luciana, minha filha, estava junto e disse:
"Mãe, sonegar é crime". Então,
aquilo não me saía da cabeça,
aquela menininha falando para
mim que "sonegar é crime", e
eu lá, colocada como a maior
sonegadora do país. Ficou uma
imagem horrorosa minha, da
Daslu. Todo o resto que a gente
tinha feito a vida inteirinha, lavou, não existe mais?
FOLHA - Como as ações policiais e
da Receita afetaram os negócios?
TRANCHESI - Fiquei 12 meses
sem conseguir importar. A gente trouxe um monte de mercadorias, mas ficaram retidas.
Vieram todos os rumores de
que iríamos quebrar ou de que
venderíamos a Daslu. Tive de
reduzir o número de funcionários. Para para mim, foi dificílimo. Mas não está em questão
vender [a butique].
FOLHA - Essas situações que fazem
com que toquemos no limite costumam ser dolorosamente as mais didáticas. O que está aprendendo?
TRANCHESI - Estou aprendendo
a acordar. Nossa, meu Deus,
que alegria é acordar. Olhar o
jardim. Agora, olho assim e falo:
"Ai, que lindo". Sempre achei
que tudo na vida ia dar certo. Aí
levei um tranco quando as coisas ficaram difíceis demais.
Acho que nunca cresci tanto
em tão pouco tempo, porque
caí na real. O espírito cresce. O
sucesso nos afasta de coisas essenciais e mais profundas.
FOLHA - Como está lidando com o
medo da morte?
TRANCHESI - Vou me curar, tenho certeza. Tenho até vontade
de falar para o médico que já
me sinto curada, que não quero
mais fazer químio, não quero
mais fazer rádio. Sinto que estou reagindo bem.
FOLHA - Falando em aprendizado,
você acha que valeu a pena fazer um
investimento comercial tão alto,
com tanta visibilidade?
TRANCHESI - Não me arrependo.
Nós moramos numa cidade que
é a maior da América Latina.
Por que ela não pode ter um
centro de luxo? Meu erro foi ter
imaginado que iria atrair mais
orgulho do que inveja.
FOLHA - Mas o fato é que um imóvel daquelas proporções foi interpretado com mais um sintoma da
desigualdade brasileira...
TRANCHESI - A imprensa internacional só elogiou nossa ousadia. E o que muita gente da imprensa brasileira disse? Que eu
tinha de ser apresentada para a
favela. Ô, mas o que é isso? Eu
era governo? Eu tinha obrigação? A favela era responsabilidade minha? Ou eu tinha alugado um imóvel apenas e estava
fazendo o meu negócio? A responsabilidade minha era com
os meus funcionários, que estavam muito bem atendidos do
começo ao fim do dia.
FOLHA - Também é fato que as investigações ganharam mais impulso, ou pelo menos mais visibilidade,
com a mudança...
TRANCHESI - Se existe irregularidade, não é com a Daslu, mas
com as importadoras. Mas, se
acharem que tem irregularidade, então apurem o que for irregular. O fisco cobra, e a gente
paga. Ninguém está contra pagar. Não foi levantado até hoje o
que a Daslu deve. Eles estão [investigando] há 13 meses, e não
sei quanto deveria pagar. Nós
estamos esperando. Todo esse
tempo, esses 13 meses, eu trabalhei só para tapar buraco. Eu,
que estou acostumada a empreender, só crescia, só aumentei, de repente você pensar que
eu perdi 13 meses da minha vida só tentando consertar coisas? Quanta coisa podia ter
construído.
FOLHA - Mas, certamente, algo você teria feito diferente na Daslu para
ter evitado tamanho desgaste...
TRANCHESI - Teria me envolvido
mais na parte administrativa.
Sou muito de criação, marketing, estratégia da loja e tal. Estudei artes plásticas, nunca me
interessei nos meandros do
crédito, débito, não sabia nada
disso. Era casada com um médico muito bem-sucedido. Eu
nunca precisei trabalhar. Nunca liguei para dinheiro. Nem
contava quanto tinha. Hoje, tenho gente que sabe, mas aprendi muito. Aprendi muito neste
ano. Aprendi que, além da Disney, deveria ter colocado mais
Wall Street na minha vida. E
também um pouco de Harvard.
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